- Nº 2370 (2019/05/3)

A literatura portuguesa no 25 de Abril

Argumentos

De várias formas a literatura portuguesa esteve no 25 de Abril. Esteve no modo como se envolveu na sua preparação, ou seja, no modo como foi preparando o clima de oposição antifascista e de resistência ideológica ao regime que oprimia o povo português. Pode dizer-se que, desde o início dos anos 40, a literatura portuguesa se afirma crescentemente como uma voz política. E não é apenas no movimento e nas obras do neo-realismo que isso acontece, embora tenham desempenhado um papel pioneiro e desafiante em alguns grandes autores como Jorge de Sena, Sophia de Mello Breyner Andresen, Eugénio de Andrade, António Ramos Rosa e Mário Cesariny. A função testemunhal da literatura luta por afirmar-se até ocupar ao longo dos anos 60 o primeiro plano.

Esses anos 60 são balizados, no romance, pela publicação de O Delfim de José Cardoso Pires e O Bolor de Augusto Abelaira em 1968 e, no ano seguinte, pelo A noite e o riso de Nuno Bragança, por Maina Mendes de Maria Velho da Costa e Não Há Morte nem Princípio de Mário Dionísio.

Importantes transformações da forma narrativa que o romance é jogam-se nestes romances: N’O Delfim a perda da omnisciência do Narrador e os vários espelhismos entre a instância narrativa e os acontecimentos contados. Em O Bolor, encontramos a ficção de um diário, espelho ideal da duplicação das vozes da narrativa íntima e dos jogos de identidade e de intromissão. A Noite e o Riso apresenta três painéis muito diferentes quanto ao estilo e à enunciação narrativas. Maina Mendes aposta em três painéis de prosa desenvolta e cujos jogos narrativos são semanticamente muito produtivos.

Nesses anos 60 há outras importantes transformações na poesia: por um lado, um movimento de rarefacção discursiva que parece constituir o fogo central na poesia de Carlos de Oliveira, onde se vive como um trabalho de reescrita apaixonada; por outro, um movimento que se desenvolve com Herberto Helder, António Ramos Rosa e Ruy Belo, a partir do poema longo de Álvaro de Campos. Num movimento de certo modo em sentido contrário, José Carlos Ary dos Santos absorve e liberta a energia revolucionária e o seu ‘pathos’.

Acompanhando o movimento social que trabalha a situação portuguesa, vemos que a literatura e a realidade socio-política são duas complexidades que se procuram. Entre as diferentes formas da literatura representar e, ao mesmo tempo, fazer parte do real, podemos sublinhar como possibilidades extremas os casos de Até Amanhã, Camaradas de Álvaro Cunhal (Manuel Tiago), de Casas Pardas de Maria Velho da Costa, e de Levantado do Chão de José Saramago. Estes três romances projectam, nos céus da leitura e da acção, uma interpretação histórica do 25 de Abril como transformação revolucionária de Portugal.

Em Levantado do Chão, encontramo-nos com uma ficção mais verdadeira que a história oficial da Reforma Agrária. Em Até amanhã, camaradas, o que podem ser as grandes greves e manifestações de protesto em Lisboa e no oeste do Ribatejo, na primeira metade dos anos 40, constroem uma pré-história do 25 de Abril de 74.

Em Casas Pardas, a estrutura da revolução é transportada para o comando da narrativa que se traduzirá numa alteração fundamental na ordem das casas, com Elvira passando da terceira pessoa a assumir-se na primeira e, ao mesmo tempo, a encomendar a Eliza, escritora, uma mudança da sua linguagem. A dizer eu e «ouvirei então aqueles que não disserem, A cada um segundo os seus dotes e hábitos, julgando que estão a falar de necessidades eternas.» Este novo ouvido condena de facto a obrigação a uma verosimilhança vocabular e impõe antes a capacidade de mudar a vida.


Manuel Gusmão