Agora chamam-lhe ética

Anabela Fino

«[O campo de ex­ter­mínio] é o pro­duto de uma con­cepção do mundo le­vada às suas úl­timas con­sequên­cias com uma ló­gica ri­go­rosa. En­quanto a con­cepção sub­sistir, as suas con­sequên­cias ame­açam-nos. A his­tória dos campos de ex­ter­mínio de­veria ser com­pre­en­dida por todos como um si­nistro sinal de pe­rigo». As pa­la­vras de Primo Levi no pre­fácio de Se isto é um homem, pu­bli­cado em 1947 em Itália, ga­nharam ac­tu­a­li­dade com a no­tícia, vinda de Ames­terdão, da in­só­lita cen­sura ocor­rida no Museu do Ho­lo­causto.

O caso conta-se em poucas pa­la­vras: a di­recção do Museu de­cidiu tapar quatro fotos que mos­tram presos a ca­minho da câ­mara de gás, assim como ca­dá­veres a ser quei­mados, no campo de con­cen­tração de Aus­chwitz-Bir­kenau. As fotos, ti­radas clan­des­ti­na­mente em 1944 por Al­berto Er­rera, outro pri­si­o­neiro, in­te­gram uma ex­po­sição or­ga­ni­zada pelo Ins­ti­tuto de Es­tudos de Guerra, o Ho­lo­causto e o Ge­no­cídio de­di­cada à per­se­guição dos ju­deus ho­lan­deses entre 1940 e 1945.

Apesar de não ser pos­sível iden­ti­ficar os corpos, o di­rector do Museu, Emile Sch­rijver, alega haver «dú­vidas éticas» quanto à ex­po­sição das fo­to­gra­fias, pelo que foi de­ci­dido tapá-las até me­lhor pon­de­ração, até porque...não se re­la­ci­onam «com as ví­timas na Ho­landa».

Dú­vidas éticas? Mas há ética em es­conder a bar­bárie do que foi o horror nazi? Há ética em cen­surar o tes­te­munho de crimes contra a Hu­ma­ni­dade ale­gando que as ví­timas, no caso, são es­tran­geiras? Há ética em apagar a His­tória?

Primo Levi, so­bre­vi­vente de Aus­chwitz, trouxe ta­tuado no braço es­querdo o nome de quando não tinha nome: 174517. Nunca o apagou. «Não somos muitos no mundo os que somos por­ta­dores de tal tes­te­munho», dizia. Tinha razão, como se vê: as bor­ra­chas estão na moda.




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