Defender o património cultural

Manuel Augusto Araújo

O in­cêndio da Notre-Dame é um alerta para as des­trui­ções que todos os dias su­cedem

O re­cente in­cêndio da Notre-Dame pro­vocou emo­ci­o­nadas ondas de choque por todo o Mundo es­tu­pe­facto por tal ter acon­te­cido numa Eu­ropa onde su­pos­ta­mente o pa­tri­mónio se en­contra mais pro­te­gido que nou­tros lu­gares do uni­verso. As chamas con­su­miram a Notre-Dame de­pois de, em 2018, ter ter­mi­nado o Ano Eu­ropeu do Pa­tri­mónio Cul­tural que teve por ob­jec­tivo sen­si­bi­lizar para os va­lores eu­ro­peus e re­forçar o sen­ti­mento de iden­ti­dade comum eu­ro­peia.

Ob­jec­tivo ex­pli­ci­ta­mente po­lí­tico de afir­mação da cul­tura eu­ro­cên­tica que agora abre a sua iden­ti­dade a ou­tras iden­ti­dades e di­fe­renças de­pois de sé­culos em que a tentou impor uni­la­te­ral­mente, de­di­cando-se pa­ra­le­la­mente ao trá­fico de bens cul­tu­rais não só de ou­tros con­ti­nentes mas dentro da pró­pria Eu­ropa. Re­corde-se os frisos do Pár­tenon tra­fi­cados por Lord Elgin, as obras pi­lhadas por Na­po­leão e pelos nazis. Apesar de, após a der­rota do re­gime na­po­leó­nico, se ter fir­mado um tra­tado para de­volver o es­pólio rou­bado aos países ori­gi­nal­mente de­ten­tores, um pri­meiro passo na sua de­fesa, o Ca­sa­mento de Caná, de Paolo Ve­ro­nese, con­tinua em ex­po­sição no Museu do Louvre, os frisos do Pár­tenon no Bri­tish Mu­seum, muitas das obras rou­badas pelos nazis estão em pa­ra­deiro in­certo.

O alarme ge­rado pelo in­cêndio da Notre-Dame, para lá do me­di­a­tismo que teve com o pú­blico abrir dos cor­dões das bolsas das fa­mí­lias mais ricas do mundo e de em­presas de ar­tigos de luxo, num total de mais de 600 mi­lhões euros para a re­cons­trução do icó­nico mo­nu­mento, o que não deixa de ser cho­cante quando coin­cide com a sua in­di­fe­rença com o de­sastre tem­po­ral­mente coin­ci­dente que acon­teceu em Mo­çam­bique – para essa gente re­fi­nada um pi­ná­culo vale muito mais que a perda de cen­tenas de vidas e as in­cal­cu­lá­veis de­vas­ta­ções que afec­taram cen­tenas de mi­lhares de pes­soas –, alerta para os pe­rigos a que tem es­tado su­jeito o pa­tri­mónio cul­tural ma­te­rial e ima­te­rial em todo o Mundo e para a es­can­da­losa de­si­gual­dade do der­ra­ma­mento de no­tí­cias sobre as des­trui­ções su­ce­didas nos úl­timos anos.

Com as guerras do im­pério norte-ame­ri­cano e seus se­quazes no Médio-Ori­ente, Iraque e Síria, e no Afe­ga­nistão a des­truição de mo­nu­mentos, a pi­lhagem, o trá­fico ilegal de ar­te­factos his­tó­ricos têm efeitos mui­tís­simo mais de­vas­ta­dores que o in­cêndio da Notre-Dame. A sua me­mória vai-se di­luindo, os au­tores desses crimes lesa pa­tri­mónio cul­tural vão fi­cando im­punes. Convém su­bli­nhar que quem de facto os per­pe­trou, os ta­libãs no Afe­ga­nistão, os jiha­distas na Síria, são ex­ten­sões, armas de ar­re­messo dos EUA e seus ali­ados que os ar­maram e fi­nan­ci­aram.

Não se pode es­quecer que os ta­libãs que des­truíram com alarde os Budas gi­gantes de Damyan são uma in­venção norte-ame­ri­cana, que os ape­li­dava de com­ba­tentes da li­ber­dade contra o go­verno não con­fes­si­onal do Afe­ga­nistão e seus ali­ados so­vié­ticos. Na Síria, os jiha­distas de di­versos grupos ali­nhados com o Es­tado Is­lâ­mico ata­caram a ci­dade de Pal­mira, pro­vo­cando des­truição gra­vís­sima num dos pri­meiros lo­cais a ser con­si­de­rado Pa­tri­mónio da Hu­ma­ni­dade pela UNESCO. A guerra ins­ta­lada na Síria pelas po­tên­cias oci­den­tais por in­ter­postas forças mer­ce­ná­rias da­ni­fi­caram, des­truíram e pi­lharam cen­tenas de ou­tros lo­cais his­tó­ricos. No Iraque a si­tu­ação evo­luiu para uma si­tu­ação se­me­lhante em­bora no seu início a pi­lhagem dos mu­seus e mo­nu­mentos tenha sido re­a­li­zada pelas tropas in­va­soras.

Cuidar do pa­tri­mónio cul­tural é uma res­pon­sa­bi­li­dade de todos. Pro­tegê-lo da sua des­truição – uma das formas de o ali­enar é pela pri­va­ti­zação, re­corde-se o que acon­tece ac­tu­al­mente na Grécia – é um dever uni­versal. A emoção pelo in­cêndio da Notre-Dame deve ser um sinal de alerta para as des­trui­ções que todos os dias su­cedem. Apesar de di­fe­rentes pontos de vista, esses actos devem ser con­de­nados. Os seus au­tores, os de facto e os mo­rais, devem ser pu­nidos.




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