Lembrar o franquismo

Correia da Fonseca

A te­le­visão trouxe-nos há dias a no­tícia de que o fas­cismo fran­quista voltou a cantar, li­te­ral­mente, pelas gar­gantas do Vox, o par­tido que terá sido a grande no­vi­dade tra­zida pelas elei­ções re­cen­te­mente ha­vidas em Es­panha. Ora, por coin­ci­dência ou talvez não, a RTP3, aces­sível por cabo, trans­mitiu na pas­sada se­gunda-feira um do­cu­men­tário acerca do fran­quismo e dos seus crimes, tantos e tais que te­riam ga­ran­tido a Fran­cisco Franco um jus­ti­fi­ca­dís­simo lugar em Nu­rem­berga. Com o tí­tulo op­ti­mista de «O fran­quismo no banco dos réus», o do­cu­men­tário co-pro­du­zido pelo Arte foi trans­mi­tido a partir das 13 horas, ex­ce­lente hora para que não ti­vesse uma te­le­pla­teia nu­me­rosa mas en­ten­dível porque de­certo o ho­rário no­turno já es­tava in­tei­ra­mente en­tregue aos fu­te­bóis. Quanto ao seu con­teúdo, su­blinhe-se uma ou duas coisas. Uma delas é que, ao con­trário do que talvez ge­ne­ra­li­za­da­mente se su­ponha, os crimes do fran­quismo não foram co­me­tidos apenas entre os anos de 36 e 39, no calor da guerra civil, mas, pelo con­trário, pro­lon­garam-se pelas dé­cadas se­guintes. Uma outra é que está ocor­rendo agora em Es­panha uma ten­ta­tiva para es­cla­recer pelo menos um pouco a di­mensão dos crimes fran­quistas, e que essa ten­ta­tiva está a ser ob­jecto de con­tes­tação por parte da di­reita a pre­texto de que pre­ju­dica uma de­se­jável re­con­ci­li­ação na­ci­onal.

O sangue nas mãos

Os muitos casos de crimes do fran­quismo re­co­lhidos pelo do­cu­men­tário da Arte vão desde o «clás­sico» as­sas­sínio de mi­lhares de mi­li­tantes de es­querda já sob prisão até ao rapto de cri­anças, fi­lhos de an­ti­fas­cistas, para serem en­tre­gues a as­so­ci­a­ções de ca­rácter re­li­gioso a fim de serem «re­e­du­cadas». Re­corde-se e acentue-se que o as­sas­sínio de ci­da­dãos de es­querda não ocorreu apenas du­rante a guerra civil e os anos que ime­di­a­ta­mente se lhe se­guiram mas, pelo con­trário, se pro­longou quase até ao ano da morte de Franco em No­vembro de 75, à sombra de uma su­posta le­ga­li­dade re­pre­sen­tada por de­ci­sões de tri­bu­nais in­dignos. É certo que os ódios de­sen­ca­de­ados por uma guerra civil são mais in­tensos que os sus­ci­tados por um con­flito entre na­ções e não surgem apenas em uma das partes em con­fronto, mas re­corde-se que a guerra civil de Es­panha foi de­sen­ca­deada sob o co­mando de um ge­neral de facto traidor que lançou contra a re­pú­blica de­mo­crá­tica e re­sul­tante do livre voto po­pular a força dos mi­li­tares mouros então sob o seu co­mando. Não é pre­ciso re­ca­pi­tular o horror que foram esses anos es­pa­nhóis entre 36 e 39, mas vale re­cordar que o golpe fran­quista foi em grande parte pla­neado no Por­tugal sa­la­za­rista e que daqui partiu um dos ca­be­ci­lhas que só de­vido a aci­dente não chegou a exercer o co­mando que lhe es­tava re­ser­vado. Em ver­dade, o sangue dos crimes fran­quistas também sal­pica as mãos sa­la­za­ristas. E é justo e mo­ral­mente sau­dável que esse dado não seja es­que­cido.




Mais artigos de: Argumentos

Pequenos Delírios Domésticos de Ana Margarida de Carvalho

O primeiro romance de Ana Margarida de Carvalho, Que Importa a Fúria do Mar, é um texto sensível, inteligente e brilhante sobre a nossa memória colectiva, sobre um tempo de resistência ao pavor e à desordem, sobre aqueles que, através das planuras do amor e do sonho – essa capacidade de...

Tentaram mas não conseguiram calar os sindicatos na PSP

A propósito de um problema real, que importava resolver, e para o qual a Associação Sindical dos Profissionais da Polícia (ASPP) alertou, o Governo do PS apresentou uma proposta de lei em que alterava vários aspectos da lei da liberdade sindical na PSP, conquistada a pulso após vários anos de...