A escrita comprometida de Orlando da Costa

Domingos Lobo

A li­te­ra­tura de Or­lando da Costa as­sume e com­bate de ideias

Or­lando da Costa, (1929-2006) uma das fi­guras sin­gu­lares da se­gunda ge­ração neo-re­a­lista, inicia a sua car­reira li­te­rária com três in­te­res­santes li­vros de po­esia, A Es­trada e a Voz (1951); Os Olhos Sem Fron­teira (1953) e Sete Odes do Canto Comum (1955). Se­guir-se-iam dois ro­mances que mar­ca­riam, de forma mar­cante e in­flu­ente, a «li­te­ra­tura com­pro­me­tida» dos anos 1960: O Signo da Ira (1961) e Podem Chamar-me Eu­rí­dice... (1964), textos que lhe «ga­ran­tiam um lugar de pro­e­mi­nência na sua ge­ração li­te­rária», se­gundo Luiz Fran­cisco Re­bello.

O Signo da Ira seria dis­tin­guido com o Prémio Ri­cardo Ma­lheiros da Aca­demia das Ci­ên­cias, livro que, como es­creveu na opor­tu­ni­dade Maria Al­zira Seixo, re­flectia o «apro­fun­da­mento da cons­ci­ência de corpo de uma terra dis­tante e então para nós ex­tre­ma­mente im­pres­siva, a terra de Goa, co­mu­ni­cando-a plas­ti­ca­mente e sen­so­ri­al­mente em pá­ginas que ainda hoje fazem desse livro uma cri­ação fas­ci­nante». À sua Goa, à qual li­gavam a origem fa­mi­liar e afec­tiva, vol­tará com a peça Sem Flores Nem Co­roas, gé­nero dra­má­tico que Or­lando da Costa também de­sen­volveu e do­minou com exímia ca­pa­ci­dade téc­nica e dis­cur­siva.

Em Sem Flores Nem Co­roas, a acção de­sen­volve-se du­rante a emi­nência de in­vasão de Goa pelas forças de Nehru, e a an­gústia dos seus na­tu­rais pe­rante esse facto, face à in­ca­pa­ci­dade ne­go­cial de Sa­lazar, que pre­feria ver mortos os sol­dados e ma­ri­nheiros ali des­ta­cados, a uma ren­dição que o di­tador con­si­de­rava «hu­mi­lhante» e uma «traição». No final do se­gundo acto as per­so­na­gens ex­pres­sarão o drama da alu­ci­nação, do des­vario fas­cista: Voz do Pai: De­fen­derão tudo e todos até ao úl­timo dos ho­mens far­dados!... São or­dens! Voz de Bostú: ... Até tombar o úl­timo homem far­dado quantos, quantos ho­mens não far­dados cairão, mortos ou fe­ridos, no chão desta terra?!

Num tempo em que al­guns po­deres ins­ta­lados tentam sub­meter a opi­nião pú­blica e pu­bli­cada aos in­te­resses do grande ca­pital e do im­pe­ri­a­lismo, in­tro­du­zindo no de­bate po­lí­tico, e nas artes, o fundo ide­o­ló­gico (ne­o­li­beral e po­pu­lista) que lhe dá su­porte, in­te­res­sante é re­co­nhecer que Mi­guel Real, um dos nossos mais im­por­tantes teó­ricos da Li­te­ra­tura não en­jeita que, pelo menos na área da Li­te­ra­tura, esta será sempre es­pelho po­lié­drico de um certo tempo, so­cial e his­tó­rico, e deve pos­suir um nú­cleo ide­o­ló­gico forte, a partir de li­vros co­ra­josos, li­vros que nos falem da prá­tica da acção, no dizer de Ale­xandre Pi­nheiro Torres.

Podem Chamar-me Eu­rí­dice..., um dos grandes ro­mances por­tu­gueses de sempre, diz-nos dessa prá­tica, é um óp­timo pre­texto para re­vi­si­tarmos a obra de Or­lando da Costa e com ela re­gres­sarmos à li­te­ra­tura que as­sume o com­bate das ideias, que as expõe clara, co­ra­jo­sa­mente; que re­pre­senta um dos mo­mentos mais altos, sim­bó­licos e ex­pres­sivos da re­sis­tência e de­núncia do fas­cismo, através da arte da pa­lavra.

Signo da Ira e Podem Chamar-me Eu­ri­díce..., são obras de um raro apuro es­té­tico, mo­de­lares no tra­ta­mento da língua e sua usança, nar­ra­tivas es­critas com sen­si­bi­li­dade e sen­tido do hu­mano, que in­vade, de forma culta e lú­cida, o ter­ri­tório vasto dos signos mi­to­ló­gicos para nos contar a his­tória de um tempo de ver­dugos, mas nos diz igual­mente do amor e da re­cusa, da morte e sua trans­fi­gu­ração, do re­morso e, so­bre­tudo, da luta pela li­ber­dade, de uma ge­ração ab­ne­gada e co­ra­josa que en­fren­tava os seus pró­prios fan­tasmas em nome de um ideal co­lec­tivo su­pe­rior.

A obra de Or­lando da Costa trans­porta a de­núncia cor­ro­siva de um mundo de pa­pelão, desse pa­raíso triste à beira mar, de um im­pério a es­bo­roar-se em re­tó­rica pífia e beata, exi­bindo o outro lado do es­pelho: o lodo, o sór­dido, o abismo in­fernal e agreste de um re­gime feudal, sus­penso pelos fer­retes da ig­no­mínia, dos cár­ceres, das se­ví­cias, da fome e da ig­no­rância – o reino do medo. Ro­mances ge­ra­ci­o­nais, de uma ge­ração que sabia, lu­tando e re­sis­tindo, que um dia ex­pul­saria do In­ferno o Cão-Ti­nhoso ou o Porco-Sujo, e que a Utopia subs­ti­tuirá o Reino das Trevas.1

___________

1 Ale­xandre P. Torres, Pre­fácio à 3.ª edição de Podem Chamar-me Eu­rí­dice..., Lisboa 1985 – Ed. Ul­meiro




Mais artigos de: Argumentos

Descobrir um museu

LUSA Uma vez mais o PCP interpelou o Governo sobre a falta de trabalhadores na Educação, no Ensino Superior e na Cultura, o que compromete gravemente o serviço público. Uma intervenção em linha com muitas outras que têm sido feitas sobre os vários problemas que afectam essas áreas, que tem...

Suspeitas, suspeita

  Durante alguns dias, a televisão portuguesa forneceu-nos diversas notícias (uma ou outra vez até apenas na dimensão de rumores) acerca de irregularidades mais ou menos graves em diversas autarquias: foram informações que a dada altura quase tomaram a intensidade de epidemia. É claro que o dever de informar e o direito...