No palco do Avanteatro a memória, o sonho e a luta

FESTA DO AVANTE! Com uma pro­gra­mação eclé­tica, que per­corre di­versas ex­pres­sões do te­atro, a mú­sica e o ci­nema do­cu­mental, a edição de 2019 do Avan­te­atro evoca as dra­má­ticas cheias de 1967 na re­gião de Lisboa.

O Avan­te­atro é um es­paço ímpar que con­vida à des­co­berta

Er­me­linda do Rio – Noc­turno para Voz e Con­cer­tina, es­crita por João Monge e en­ce­nada e in­ter­pre­tada por Maria João Luís, é uma das pro­postas deste ano do Avan­te­atro. As­sume-se como um «tes­te­munho do­rido de quem perdeu grande parte da fa­mília na maior ca­tás­trofe na­tural em Por­tugal desde o ter­ra­moto de 1755»: as cheias do Tejo de No­vembro de 1967. Nar­rada na pri­meira pessoa, a tra­gédia é vista pelos olhos de uma me­nina e de sua mãe, que as­sistem ao de­sa­pa­re­ci­mento de fa­mi­li­ares e amigos. A «noite do fim do mundo», como al­guém lhe chamou, foi es­con­dida pela di­ta­dura na sua am­pli­tude e no dra­ma­tismo dos seus efeitos.

À Es­pera de Bec­kett ou Qua­qua­quaqua é uma cri­ação de Jorge Lou­raço (que as­sume igual­mente a en­ce­nação) cen­trada na fi­gura de Ri­bei­rinho, nome maior do te­atro por­tu­guês. É a partir de três mo­mentos da vida do actor e en­ce­nador, todos re­la­ci­o­nados com a peça de Sa­muel Bec­kett À Es­pera de Godot: após as «elei­ções» de 1958, a se­guir à morte de Sa­lazar e, em África, em vés­peras da Re­vo­lução de Abril.

A Noite da Dona Lu­ciana é uma en­ce­nação de Ri­cardo Neves-Neves da obra do ar­gen­tino Copi, que dilui as fron­teiras entre a ima­gi­nação e o es­te­reó­tipo, a re­a­li­dade quo­ti­diana, o ab­surdo e a ex­tra­va­gância.

Erên­dira! Sim, avó… é um es­pec­tá­culo criado por Rita Lello a partir de uma obra do es­critor co­lom­biano ga­lar­doado com o Prémio Nobel da Li­te­ra­tura Ga­briel Garcia Mar­quez. No texto, como no es­pec­tá­culo, mer­gulha-se de uma forma «má­gica» nas mi­sé­rias de uma so­ci­e­dade in­dí­gena vi­o­len­tada por mis­si­o­ná­rios evan­ge­li­za­dores e re­gida por mi­li­tares sem es­crú­pulos e, par­ti­cu­lar­mente, na re­a­li­dade da ex­plo­ração se­xual de me­nores.

O Auto da Índia, de Gil Vi­cente, conta com duas adap­ta­ções: uma, do Te­atro Es­túdio Fon­te­nova, en­ce­nada por Fi­lipe Craw­ford, é a 66.ª pro­dução desta com­pa­nhia; outra, para a in­fância, é do grupo Folia, com mú­sica ori­ginal e exe­cu­tada por João Lima. As con­sequên­cias so­ciais dos «des­co­bri­mentos» são ex­postas iro­ni­ca­mente por Gil Vi­cente em pro­du­ções to­tal­mente di­fe­rentes, a pri­meira ten­tando ser fiel ao ori­ginal e a se­gunda di­ri­gindo-se aos mais novos, man­tendo a mor­da­ci­dade que marca a obra do dra­ma­turgo por­tu­guês qui­nhen­tista.

Ainda para a in­fância, a Com­pa­nhia de Te­atro de Al­mada apre­senta O Ro­mance da Ra­posa, adap­tação de Te­resa Ga­feira do texto de Aqui­lino Ri­beiro. Es­crito para o filho do autor, O Ro­mance da Ra­posa é, ao mesmo tempo, re­a­lista e sim­bó­lico, mos­trando às cri­anças o me­ca­nismo da as­túcia e re­ve­lando a «re­lo­jo­aria ín­tima, en­ge­nhosa e ar­teira» da ra­posa.

Insomnio é a pro­posta deste ano para o te­atro de rua. Criado e di­ri­gido por Ju­lieta Au­rora Santos, propõe uma fas­ci­nante vi­agem ao sono e ao sonho an­co­rada, entre ou­tros, em es­tudos da neu­ro­ci­ência e da fi­lo­sofia.

Mú­sica e ci­nema do­cu­mental

São vá­rias as pro­postas mu­si­cais na pro­gra­mação deste ano do Avan­te­atro, que pre­en­chem as noites no bar e uma tarde no átrio. O pro­jecto Cosmos propõe di­versas abor­da­gens às formas ar­tís­ticas do sé­culo XXI: do Jazz à World Music, da mú­sica clás­sica à con­tem­po­rânea, pas­sando pela dança, também ela con­tem­po­rânea. A ideia que per­passa é a de ver­sa­ti­li­dade. In­te­gram Cosmos quatro mú­sicos – in­tér­pretes de sa­xo­fone, tuba, per­cussão e acor­deão – e uma bai­la­rina.

O mú­sico Remna Schwarz, de­pois de in­cur­sões pelo reggae e pelo rap, junta agora na sua mú­sica os muitos lu­gares onde a vida o levou: nasceu no Se­negal e é filho de mãe cabo-ver­diana e de pai gui­ne­ense. O seu mais re­cente disco, Sal­tana, dá con­ti­nui­dade à sua «linha ar­tís­tica não co­mer­cial», como o pró­prio afirma, jun­tando ritmos cabo-ver­di­anos, gui­ne­enses e ma­li­anos e reu­nindo mú­sicos afri­canos e de lo­cais tão di­versos quanto Por­tugal ou Ar­gen­tina. Karyna Gomnes, Eneida Marta e Ma­necas Costa são con­vi­dados es­pe­ciais.

Alma Menor junta a gaita de fole e o acor­deão e o re­sul­tado é uma mescla de so­no­ri­dades a partir destes dois ins­tru­mentos que marcam a et­no­grafia mu­sical por­tu­guesa que ar­risca in­cur­sões pelo tango, klezmer, polca, jazz e pelos ritmos bal­câ­nicos.

Por fim, os Grand Sun Band são uma banda cons­ti­tuída por quatro amigos do Se­cun­dário com­pondo uma for­mação rock clás­sica – dois gui­tar­ristas (um dos quais também vo­ca­lista e o outro igual­mente te­clista), um bai­xista e um ba­te­rista – que ex­plora as orlas do rock psi­ca­dé­lico e anda à margem do mains­tream, em­bora não o des­cure de todo. O seu álbum The Plastic Pe­ople of the Uni­verse tem «cor e so­no­ri­dades ca­lei­dos­có­picas, riffs de gui­tarra in­ter­ga­lá­ticos, vo­cais e sin­te­ti­za­dores es­pa­ciais», as­sumem os pró­prios.

No ci­nema do­cu­mental a aposta recai do tra­balho de Göran Hugo Olsson A Res­peito da Vi­o­lência, de 2014. O tema – a luta de li­ber­tação dos povos afri­canos – não podia ser mais apro­priado para a Festa do Avante! quando se cum­prem 45 anos da Re­vo­lução de Abril, que tem na li­ber­tação dos povos das an­tigas co­ló­nias uma das mais lu­mi­nosas con­quistas. O ma­te­rial de ar­quivo re­cu­pe­rado no filme in­clui uma in­cursão noc­turna com o MPLA em An­gola e en­tre­vistas a guer­ri­lheiros mo­çam­bi­canos da Fre­limo, Thomas San­kara, Amílcar Ca­bral e ou­tros.


Justas ho­me­na­gens

O Avan­te­atro ho­me­na­geia este ano dois nomes ím­pares do te­atro por­tu­guês, re­cen­te­mente fa­le­cidos: Fer­nando Mi­dões e Ar­mando Caldas. O pri­meiro no­ta­bi­lizou-se como jor­na­lista, crí­tico de te­atro, actor e en­ce­nador e o se­gundo como actor e en­ce­nador, par­ti­cu­lar­mente no In­ter­valo, grupo de te­atro. Eram ambos mi­li­tantes do PCP e ci­da­dãos ac­tivos em de­fesa da cul­tura, dos di­reitos dos tra­ba­lha­dores, da paz e da so­li­da­ri­e­dade.