«Podem passar dois ou 10 anos que continuaremos a resistir»

Gustavo Carneiro

Jorge Ar­reaza, mi­nistro das Re­la­ções Ex­te­ri­ores da Re­pú­blica Bo­li­va­riana da Ve­ne­zuela es­teve em Por­tugal no final de Junho para par­ti­cipar em reu­niões com o Go­verno por­tu­guês e em en­con­tros com amigos do seu país. Em en­tre­vista ao Avante!, falou da si­tu­ação do seu país, da brutal ofen­siva do im­pe­ri­a­lismo, da de­ter­mi­nada re­sis­tência e da so­li­da­ri­e­dade. A vi­tória, ga­rante, é certa!

«Não temos dú­vidas de que em qual­quer si­tu­ação sai­remos vi­to­ri­osos»

- En­tre­vista com Jorge Ar­reaza, mi­nistro das Re­la­ções Ex­te­ri­ores da Re­pú­blica Bo­li­va­riana da Ve­ne­zuela

Quais os mo­tivos da sua vi­sita a Por­tugal?

Nos úl­timos dias pas­sámos por di­versos países da Eu­ropa. Em Roma reu­nimos com o novo di­rector exe­cu­tivo da FAO [or­ga­ni­zação das Na­ções Unidas para Ali­men­tação e Agri­cul­tura], com o res­pon­sável pelo pro­grama mun­dial de ali­mentos da ONU e com o con­se­lheiro di­plo­má­tico do pri­meiro-mi­nistro ita­liano. No Va­ti­cano en­con­trámo-nos com o Se­cre­tário para as Re­la­ções com os Es­tados, mon­se­nhor Paul Gal­lagher, e em Ma­drid ti­vemos uma longa reu­nião com o mi­nistro dos Ne­gó­cios Es­tran­geiros, Josep Bor­rell. Em Viena, par­ti­ci­pámos num im­por­tante se­mi­nário sobre as me­didas co­er­civas uni­la­te­riais e ex­tra­ter­ri­to­riais dos EUA.

A Lisboa vi­emos con­versar com o mi­nistro [dos Ne­gó­cios Es­tran­geiros] Au­gusto Santos Silva e reunir com amigos, no­me­a­da­mente o Par­tido Co­mu­nista Por­tu­guês e ou­tras or­ga­ni­za­ções so­li­dá­rias com a Ve­ne­zuela. Apesar das nossas re­la­ções di­plo­má­ticas com o Go­verno por­tu­guês terem so­frido al­guns ter­ra­motos este ano, man­temos uma grande pro­xi­mi­dade e so­li­da­ri­e­dade com Por­tugal.

Re­la­ti­va­mente a esse «ter­ra­moto», sentiu al­guma al­te­ração na ati­tude do Go­verno por­tu­guês?

É uma questão de­li­cada, pois não seria cor­recto re­velar o teor da reu­nião, mas posso dizer que é do in­te­resse de ambos os países manter a co­mu­ni­cação entre si.

Pa­rece-me que tanto o mi­nistro Santos Silva como Bor­rell se dei­xaram levar, na­quele mo­mento [em Ja­neiro], pelas pres­sões ex­ternas, vindas prin­ci­pal­mente dos Es­tados Unidos. Con­ven­ceram-se que o Pre­si­dente Ni­colas Ma­duro ia ser der­ru­bado numa se­mana e re­co­nhe­ceram de ime­diato Guaidó como pre­si­dente da Ve­ne­zuela. Mas, ao mesmo tempo, não podem deixar de re­co­nhecer o go­verno que tem con­trolo efec­tivo sobre o país e sentem ne­ces­si­dade de manter algum tipo de re­lação con­nosco.

Fa­lámos de múl­ti­plos temas, entre eles o di­nheiro do Es­tado ve­ne­zu­e­lano que está blo­queado no Novo Banco. O Go­verno por­tu­guês diz que não tem margem de acção e que não pode fazer nada, mas in­sis­timos que esse di­nheiro é do Es­tado ve­ne­zu­e­lano e tem de ser des­blo­queado, pois é para com­prar me­di­ca­mentos, ali­mentos, fac­tores de pro­dução para a in­dús­tria, se­mentes e fer­ti­li­zantes para a agri­cul­tura e para pagar aos di­plo­matas.

Não é acei­tável que uma de­cisão dos EUA leve à re­tenção de di­nheiro que é dos ve­ne­zu­e­lanos e que isso possa levar a pro­blemas graves na pro­dução ou a que pes­soas possam morrer sem acesso a me­di­ca­mentos ou tra­ta­mentos mé­dicos. O Go­verno por­tu­guês po­deria fazer mais se ti­vesse essa von­tade po­lí­tica.

Pode dar exem­plos dos efeitos do blo­queio?

Há con­sequên­cias para em­presas por­tu­guesas e para cre­dores por­tu­gueses a quem pa­gá­vamos por esta via. Em Itália, por exemplo, há pa­ci­entes (na mai­oria cri­anças) a re­ceber tra­ta­mentos mé­dicos pagos por in­ter­médio de um con­vénio com a PDVSA [em­presa pe­tro­lí­fera es­tatal ve­ne­zu­e­lana] e a sua fi­lial nos EUA, a Citgo, que foi con­fis­cada.

A mai­oria destes pa­ci­entes já re­cebeu os trans­plantes de me­dula óssea de que ne­ces­si­tavam e os tra­ta­mentos podem durar um, dois ou três anos. Fe­liz­mente, o go­verno ita­liano con­ti­nuou, pon­tu­al­mente, a fi­nan­ciar esses tra­ta­mentos, mas não a es­tadia e ali­men­tação das fa­mí­lias. Também havia pa­ga­mentos a fazer de me­di­ca­mentos e tra­ta­mentos de diá­lise, que con­se­guimos re­solver por ou­tras vias, mais di­fí­ceis e cus­tosas. Para nós, as im­por­ta­ções são hoje mais caras, porque é-nos co­brado pelas em­presas um «se­guro de guerra».

Os grandes meios de co­mu­ni­cação falam de uma si­tu­ação ca­la­mi­tosa na Ve­ne­zuela. É esta a re­a­li­dade?

Na Ve­ne­zuela não há ne­nhuma ca­la­mi­dade ou crise hu­ma­ni­tária. Há, sim, uma si­tu­ação eco­nó­mica di­fícil. No ano pas­sado ti­vemos um pro­cesso de hiper-in­flação muito duro, pro­vo­cado pela guerra mo­vida contra a nossa moeda, mas hoje há mais me­di­ca­mentos e ali­mentos do que havia há dois anos. Con­ti­nu­amos a en­tregar casas às po­pu­la­ções e a dis­tri­buir ali­mentos ao povo e as po­lí­ticas so­ciais avançam. Não en­cer­rámos ne­nhuma es­cola, uni­ver­si­dade ou hos­pital. Pelo con­trário, es­tamos a formar mais mé­dicos e a abrir mais con­sul­tó­rios po­pu­lares. Fa­zemos um grande es­forço no meio das di­fi­cul­dades.

Mas a nossa pro­dução pe­tro­lí­fera baixou e é di­fícil re­cu­perar quando existe um blo­queio que im­pede que im­portes má­quinas, peças e até di­lu­ente ou quando os pró­prios fundos da em­presa são blo­que­ados. Claro que com menos ren­di­mentos do pe­tróleo há menos in­ves­ti­mentos para o povo.

Há di­fi­cul­dades, sim, mas o povo ve­ne­zu­e­lano re­siste e con­tinua a es­tudar, a tra­ba­lhar, a ir à praia e a festas…

e unido em torno da Re­vo­lução Bo­li­va­riana?

A Ve­ne­zuela é desde há muitos anos um país po­la­ri­zado, onde se trava uma dis­puta entre o so­ci­a­lismo, que es­tamos a cons­truir, e o ca­pi­ta­lismo. É um com­bate his­tó­rico pelo con­trolo da ri­queza. A mai­oria dos ve­ne­zu­e­lanos apoia a Re­vo­lução Bo­li­va­riana e con­tinua, apesar das di­fi­cul­dades, cons­ci­ente do sig­ni­fi­cado do blo­queio, das ten­ta­tivas de golpe de Es­tado ou das ame­aças de in­vasão.

A nossa base so­cial de apoio até se am­pliou nos úl­timos tempos. Havia pes­soas des­con­tentes e que dis­cor­davam com al­gumas me­didas do go­verno que, quando sen­tiram que ame­a­çavam a sua pá­tria com in­va­sões mi­li­tares e que há gente paga para de­sen­ca­dear golpes de Es­tado e pro­mover a vi­o­lência, vol­taram «a casa», que é a Re­vo­lução…

Isso é claro no país, que se está pe­rante uma agressão or­ga­ni­zada a partir do ex­te­rior?

A mai­oria da po­pu­lação tem isso bem claro!

Como se sai de uma si­tu­ação como a que a Ve­ne­zuela en­frenta?

Antes de mais, cum­prindo a Cons­ti­tuição. O povo deu-nos um man­dato e há que con­ti­nuar a go­vernar com o povo. Em se­gundo lugar há que abordar o pro­blema po­lí­tico-ins­ti­tu­ci­onal da única forma pos­sível, a do diá­logo. O Pre­si­dente Ma­duro foi o im­pul­si­o­nador do diá­logo em 2014, 2016, 2017 e 2018, quando se chegou a um acordo que, no úl­timo mo­mento, a opo­sição de­cidiu não as­sinar… Este ano, nos mo­mentos de maior vi­o­lência da opo­sição, o Pre­si­dente in­sistiu sempre que havia que di­a­logar.

Fe­liz­mente, o go­verno da No­ruega tomou uma ini­ci­a­tiva de diá­logo desde Ja­neiro: o Pre­si­dente aceitou a pro­posta, a opo­sição fi­nal­mente também e es­tamos a avançar. Na nossa de­mo­cracia não há forma de avançar sem diá­logo com os tra­ba­lha­dores, com os es­tu­dantes, com os cam­po­neses, com o sector pri­vado, com os par­tidos…

Qual o po­si­ci­o­na­mento da co­mu­ni­dade por­tu­guesa em toda esta si­tu­ação?

A co­mu­ni­dade por­tu­guesa é di­fe­rente das ou­tras, porque está em todo o país, em todos os es­tratos so­ciais, pro­fun­da­mente in­te­grada na so­ci­e­dade. Gos­tamos muito da co­mu­ni­dade por­tu­guesa, porque os por­tu­gueses são tra­ba­lha­dores e são já parte da nossa iden­ti­dade. Al­guns têm muito di­nheiro e ou­tros vivem nos bairros po­bres. Os es­pa­nhóis ou os ita­li­anos também são im­por­tantes, mas man­ti­veram-se mais fe­chados sobre si pró­prios e são mais ho­mo­gé­neos. As­se­guro que há muitos por­tu­gueses que estão com a Re­vo­lução.

Até onde pensas que os EUA po­derão ir para atingir os seus ob­jec­tivos re­la­ti­va­mente à Ve­ne­zuela?

Não têm li­mites. Aliás, já dis­seram que todas as op­ções estão em cima da mesa. Há pouco san­ci­o­naram o filho do Pre­si­dente Ni­colas Ma­duro, a mim também me san­ci­o­naram e já nem me lembro porquê…

Até agora fra­cas­saram: em Ja­neiro, em Fe­ve­reiro, em Abril, e o golpe que ti­nham pre­pa­rado para esta se­mana também fra­cassou. No final terão de de­cidir: ou res­peitam o povo ve­ne­zu­e­lano e se en­tendem com o Pre­si­dente Ma­duro e a Re­vo­lução ou se­guem a via da in­ter­venção mi­litar. Penso que po­demos evitar esta úl­tima opção, não só através do diá­logo na­ci­onal como também da so­li­da­ri­e­dade.

Nos pró­prios EUA há um im­por­tante mo­vi­mento contra a guerra, mas o go­verno norte-ame­ri­cano está nas mãos de um grupo su­pre­ma­cista, ra­cista e em­pre­sa­rial capaz de qual­quer coisa.

Uma das ideias que mais se di­funde re­la­ti­va­mente à Ve­ne­zuela bo­li­va­riana é o seu ale­gado iso­la­mento in­ter­na­ci­onal. Como mi­nistro das Re­la­ções Ex­te­ri­ores, é isto que ve­ri­fica?

Na Amé­rica La­tina e na Eu­ropa há muitos go­vernos que se su­bor­dinam aos EUA. Na União Eu­ro­peia pa­rece que há uma es­pécie de di­ta­dura onde nin­guém se atreve a que­brar o con­senso. Bom, é certo que Itália, Chipre, Es­lo­vénia e Grécia não re­co­nhe­ceram Guaidó, mas la­men­tamos que Por­tugal e Es­panha se te­nham jun­tado a essa lou­cura.

Temos ali­ados im­por­tantes, como a China e a Rússia, que são dois grandes cen­tros de poder no mundo. Na Amé­rica La­tina con­tamos com todos os povos, mas a nível de go­vernos temos como ali­ados a Bo­lívia, Ni­ca­rágua, Cuba e Es­tados das Ca­raíbas, que são muito dignos. Também o Mé­xico, hoje, res­peita a so­be­rania ve­ne­zu­e­lana. Não es­tamos iso­lados, es­tamos é blo­que­ados, que é di­fe­rente.

Há in­clu­si­va­mente go­vernos que nos querem ajudar e não con­se­guem, por es­tarmos im­pe­didos de uti­lizar o sis­tema fi­nan­ceiro in­ter­na­ci­onal. Em vá­rios as­pectos é um blo­queio mais agres­sivo do que o im­posto a Cuba. El­liot Abrahams [en­viado es­pe­cial dos EUA para a Ve­ne­zuela] disse-me este ano que como o golpe mi­litar tinha fa­lhado iam fazer co­lapsar a nossa eco­nomia, blo­quear-nos, para que, sem co­mida, sem ser­viços pú­blicos, sem nada, o povo der­ru­basse o go­verno.

Isso não vai acon­tecer na Ve­ne­zuela. Podem passar dois ou 10 anos que o povo con­ti­nuará a re­sistir!

Isso sig­ni­fica que a Re­vo­lução está en­rai­zada no povo?

Nos mais po­bres, so­bre­tudo, que hoje têm casas me­lhores, um mé­dico ao pé de casa, os seus fi­lhos a es­tudar gra­tui­ta­mente nas es­colas e uni­ver­si­dades, muitas vezes até à pós-gra­du­ação. Todos be­ne­fi­ci­aram, de al­guma ma­neira, com a Re­vo­lução.

O povo, or­ga­ni­zado em co­munas e con­se­lhos co­mu­nais, é a base fun­da­mental da Re­vo­lução Bo­li­va­riana e está dis­posto a dar a sua vida pela pá­tria. Não temos dú­vidas de que em qual­quer si­tu­ação, in­cluindo numa agressão mi­litar, sai­remos vi­to­ri­osos. Seria uma ca­tás­trofe, é a úl­tima coisa que de­se­jamos, mas ven­ce­ríamos. Sa­bemos re­sistir, é uma ca­rac­te­rís­tica his­tó­rica, veja-se Bo­lívar e Chávez.

Que papel atribui à so­li­da­ri­e­dade?

A so­li­da­ri­e­dade pode ser um dos prin­ci­pais muros de pro­tecção da Re­vo­lução Bo­li­va­riana, para evitar uma guerra, uma ca­tás­trofe. Nos mo­mentos mais di­fí­ceis, este ano, houve ex­pres­sões de so­li­da­ri­e­dade na Eu­ropa, na Amé­rica La­tina, nos EUA, em países onde eu nem sabia que a so­li­da­ri­e­dade es­tava or­ga­ni­zada, como a Co­reia do Sul ou o Japão, e os go­vernos ouvem isso. Evitar uma guerra é obri­gação de todas as pes­soas de boa von­tade e essa so­li­da­ri­e­dade pode travar os planos do im­pe­ri­a­lismo para o nosso país. Vamos tendo mais apoio e é im­por­tante que essa so­li­da­ri­e­dade se man­tenha para que os go­vernos per­cebam que a Ve­ne­zuela não está só!

No final de tudo, «ven­ce­remos»?

Não temos outra opção! O im­pe­ri­a­lismo está em de­ca­dência e não será apenas a Ve­ne­zuela a vencer, mas todos os povos do mundo. Nós somos apenas um campo de ba­talha desta guerra.