O tempo dos monstros

António Santos

«A crise con­siste no facto de que o velho morre e o novo não pode nascer: neste in­ter­regno ve­ri­ficam-se os mais va­ri­ados sin­tomas mór­bidos» Da cela onde, há 80 anos, viria a morrer, Gramsci des­crevia os nossos tempos com si­bi­lina pre­cisão. Do­nald Trump, ar­rais do ca­pi­ta­lismo mun­dial e pon­tí­fice das oci­den­tais de­mo­cra­cias à sua imagem cri­adas, veio a ter­reiro mandar quatro con­gres­sistas de­mo­cratas «para a terra delas». Li­te­ral­mente. O mundo, já algo des­sen­si­bi­li­zado para os tweets de Trump, la­vrou a cita nos ro­dapés dos no­ti­ciá­rios e mandou ar­quivar, para am­nésia fu­tura, sob «Trump a ser po­li­ti­ca­mente in­cor­recto». Mas Ocasio-Cortez, Ayanna Pres­sley, Rashida Tlaib e Ilhan Omar são, note-se, es­tado-uni­denses: as pri­meiras três por nas­ci­mento, a úl­tima por ci­da­dania ad­qui­rida em cri­ança. E Trump sabia-o, como também sabia que Obama nas­cera nos EUA, o que tam­pouco o im­pediu de, até hoje, in­si­nuar o con­trário. A na­ci­o­na­li­dade é a mais im­por­tante arma ide­o­ló­gica de Trump, que se de­clara, aliás, «na­ci­o­na­lista». Na mesma ti­rada de tweets, Trump des­creveu as con­gres­sistas como «anti-Amé­rica», nação que as acusou de «odiar» e pro­meteu-lhes que «A Amé­rica nunca será co­mu­nista», pelo que «SE NÃO ESTÃO BEM AQUI, VÃO-SE EM­BORA» [sic]. Para o mag­nata, ser «ame­ri­cano» é uma ide­o­logia: rezar ao mesmo deus, odiar os mesmos ini­migos, ve­nerar os sím­bolos na­ci­o­nais, amar as forças ar­madas, ter medo da di­fe­rença e per­tencer à «raça branca». Este, podia tê-lo es­crito Gramsci, é, efec­ti­va­mente, o tempo dos mons­tros.

A ide­o­logia na­ci­onal de Trump não é nova. Foi sendo, du­rante o úl­timo sé­culo, vis­ce­ral­mente em­bu­tida na cons­ci­ência po­pular. The­o­dore Ro­o­se­velt dizia que o «ame­ri­ca­nismo» é «uma questão de es­pí­rito, con­vicção e dever, e não uma questão de crença ou de nas­ci­mento», mas, e Trump per­cebeu-o, o con­ceito tão mol­dável que com ele também se pode di­vidir a classe tra­ba­lha­dora, ga­nhar elei­ções e cons­truir o fas­cismo.

Leia-se por este prisma a guerra de­cla­rada por Trump aos tra­ba­lha­dores imi­grantes. O Pre­si­dente dos EUA chama aos imi­grantes «vi­o­la­dores» e «tra­fi­cantes», re­fere-se pu­bli­ca­mente às suas pá­trias como «países de merda», en­co­raja a de­lação dos não-do­cu­men­tados e ce­lebra, ufano, «as mai­ores rusgas de sempre». A Casa Branca, que esta se­mana de­clarou o fim do asilo, fran­queou o trilho a mi­lhares de actos de vi­o­lência nas ruas, nas es­colas e nos lo­cais de tra­balho de todo o país, alar­gando ainda o vasto sis­tema de campos de con­cen­tração ao longo da fron­teira com o Mé­xico onde cri­anças são en­jau­ladas, abu­sadas e, por vezes, «sui­ci­dadas».

Há me­tade de uma Amé­rica, ide­o­lo­gi­ca­mente ame­ri­cana, com ci­ca­trizes da guerra civil, que aceita tudo isto. E é assim que al­guém um dia pa­tri­o­ti­ca­mente faz notar que nos campos de con­cen­tração não cabem só imi­grantes.



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