Luta Promulgadas pelo Presidente da República em Agosto e publicadas pelo Governo a 4 de Setembro, as alterações à legislação Laboral que entram em vigor no próximo dia 1 de Outubro constituem um retrocesso nos direitos dos trabalhadores porque ampliam as possibilidades de recurso ao trabalho precário, ao contrário do que o Governo diz pretender.
A iniciativa partiu do Governo minoritário do PS, que a formalizou há cerca de um ano depois de ter levado a matéria a discussão na Concertação Social. Naquele fórum, a proposta inicial acabou por ser cirurgicamente alterada.
A CGTP-IN recusou a subscrição de um acervo normativo que acusa de escancarar ainda mais as portas à precarização das relações laborais, isto é, que acaba por concretizar um objectivo diferente daquele que proclamam os seus promotores.
Diversamente entenderam os demais parceiros sociais, tendo as associações patronais e a UGT concordado com a versão final das alterações que, no fundamental, resultaram na proposta legislativa levada à Assembleia da República pelo executivo liderado por António Costa, tendo sido aprovada com os votos a favor do PS, a abstenção do PSD e do CDS, e os votos contra do BE, do PCP, do PEV e do PAN.
PCP, BE e PEV anunciaram entretanto o pedido de fiscalização sucessiva ao Tribunal Constitucional de três das alterações levadas a cabo, pese embora muitas mais merecessem ser confrontadas com a letra e o espírito da Constituição da República Portuguesa.
De resto, na passada quinta-feira, a CGTP-IN promoveu na sua sede, em Lisboa, um seminário justamente intitulado «As Alterações à Legislação Laboral, o Direito do Trabalho e a Constituição da República» (ver caixa), no qual se recensearam razões e argumentos para solicitar a desconformidade de algumas das alterações à legislação laboral com a lei fundamental do País, na qual persistem princípios e direitos fundamentais aos quais nenhuma norma se pode sobrepor ou conflituar.
Fato à medida
O processo que conduziu à mudança para pior da legislação laboral, o 15.º em 45 anos de democracia, registe-se, merece desde logo um reparo. É oportuno lembrar que a Concertação Social é um espaço consultivo, ou seja, cujos pareceres, apreciações genéricas ou detalhadas, e mesmo propostas «consensuais», no todo ou em parte, não têm carácter vinculativo para os órgãos de soberania.
Assim, pese embora o patronato, em uníssono, e a central sindical UGT (reincidente em assinar de cruz retrocessos nos direitos dos trabalhadores e em abrir fendas na muralha legislativa destinada a proteger a parte mais fraca nas relações laborais dominantes), tenham acordado um conjunto de alterações à legislação laboral, tal não vincula os legisladores, a quem cabe em todo o caso elaborar e votar leis.
Não foi isso que fez o Governo do PS ao verter em disposições legais muito do que os representantes dos patrões reclamaram. Tanto mais que acabou por subverter os propósitos anunciados destas alterações à legislação laboral, designadamente ampliando as possibilidades de recurso ao trabalho precário e legitimando-o, e mantendo o desequilíbrio na relação de forças entre trabalho e capital que já vinha do Código do Trabalho inicial e que outras mudanças para pior nas leis do trabalho não obstaram.
E o Governo e a bancada do PS na AR, que em convergência com as homólogas do PSD e CDS aprovou as alterações à legislação laboral, fizeram-no quer pelo que deram ao patronato como contrapartida para a compressão da contratação a prazo, quer pelo que se recusaram a reverter fruto de ofensivas levadas a cabo por anteriores governos com o apoio dos mesmos protagonistas parlamentares, quer ainda pelos alçapões deixados.
Fecha uma porta mas abre janelas e postigos
A duração máxima dos contratos a termo certo de três para dois anos, e dos vínculos a termo incerto dos actuais seis para um máximo de quatro anos são alterações promovidas.
Por outro lado, as renovações dos contratos com prazo definido encontra-se já limitada a um máximo de três consecutivas, tendo sido acrescentada uma regra que impõe que a soma das renovações não pode contemplar um prazo mais longo do que o previsto no contrato inicial.
A nova legislação condiciona ainda a contratação a prazo para postos de trabalho permanente aos desempregados há mais de 24 meses, impedindo a possibilidade que tal aconteça com jovens à procura do primeiro emprego ou com desempregados há mais de 12 meses, e determina um limite de até seis renovações dos contratos de trabalho temporário, precisando também as situações em que a contratação temporária pode ser um recurso para responder a situações de doença, acidente, licença parental ou similares de um trabalhador que ocupa um posto de trabalho.
Contudo – e aqui começa-se a abrir janelas e postigos, legitima-se o recurso a mão-de-obra precária a título de uma taxa sobre a rotatividadeexcessivada força de trabalho. Com efeito, a partir de 2021, as empresas passam a poder celebrar contratos a termo sem restrições se pagarem uma contribuição adicional por ultrapassarem a média anual dos vínculos precários no sector respectivo.
Outra norma gravosa é o alargamento do período experimental dos actuais 90 para 180 dias abrangendo jovens à procura do primeiro emprego e desempregados de longa duração e a sua generalização. Isto é, a partir de agora, não é apenas em funções de especial complexidade e competências que se aplica um período experimental de seis meses, mas nas profissões indiferenciadas. O que permite que o período experimental deixe de ser uma forma de o «empregador» aquilatar da capacidade de um trabalhador, mas uma válvula de escape para o despedir, sem necessidade de justificação ou qualquer encargo, antes da conclusão dos 180 dias, substituindo-o por outro em condições análogas.
Acrescem três factores de particular gravidade: o trabalhador jovem à procura do primeiro emprego e o desempregado de longa duração não têm direito a subsídio de desemprego em caso de dispensa durante o período experimental; não menos relevante, é o facto de não ser consensual (e não se prevê que passe a ser) a definição de «primeiro emprego», havendo quem defenda que tal só ocorre quando se celebra um contrato sem termo, e quem defenda que o primeiro emprego ocorre em qualquer relação laboral estabelecida exceptuando os estágios; a proibição de um novo período experimental está circunscrita à existência de uma situação semelhante anterior no mesmo sector. O que, em resumo, pode colocar um jovem trabalhador a rodar ad eternum entre períodos experimentais de sector em sector, voltando ou não à casa de partida.
A compensar o patronato pela limitação da contratação a prazo, o Governo do PS incluiu igualmente nas alterações à legislação laboral que entram em vigor a 1 de Outubro, o alargamento de 15 para 35 dias dos contratos de muito curta duração e a sua generalização a todos os sectores, bastando para a sua celebração (oral ou escrita) que as empresas invoquem acréscimos excepcionais de actividade ou picos nos ciclos produtivos anuais decorrentes de razões imputáveis ao «mercado».
Estes contratos só podem ser celebrados duas vezes no mesmo ano com um trabalhador.
Por outro lado, apesar de extinguir o banco de horas individual, que todavia se mantém até 1 de Outubro de 202, é criada a figura do banco de horas grupal, abrangendo uma equipa, secção ou unidade. Desde que aprovado por uma maioria de trabalhadores, passa a vigorar para todos.
Por fim, mas não de somenos importância, a actual legislação mantém o ataque cerrado à contratação colectiva não apenas porque não repõe o princípio do tratamento mais favorável, como seria desejável, mas ainda porque permite a extinção das convenções em caso de extinção da existência jurídica de uma das partes. Da associação patronal, por exemplo.
O inferno existe?
Façamos um exercício académico, mas que pode materializar-se a breve trecho. Uma empresa contrata um jovem trabalhador no início de um ano e despede-o antes do fim do período experimental. Como necessita dele, contrata-o a prazo depois de calculada, em Março desse mesmo ano, como determina a legislação, a média da precariedade dos vínculos no seu sector de actividade. Paga taxa por exceder o número médio de contratos a prazo ou não, é indiferente porque fica sempre mais barato para o patrão.
Findo o contrato, recorre a um contrato de muito curta duração. Ou dois, porque pode. Se a interpretação dominante for a de que o «primeiro emprego» se extingue com uma qualquer relação laboral inaugural, a empresa já não pode contratar aquele trabalhador. Mas pode fazê-lo outra doutro sector nos mesmos moldes. Se a interpretação for a de que o primeiro emprego só se extingue com um contrato sem termo, como o trabalhador teve em período experimental antes da entrada em vigor desse vínculo estável, a empresa ou outra do mesmo sector retoma o ciclo com esta ou outras combinações possíveis.
CGTP-IN promoveu debate
Discutir os efeitos das alterações para pior à legislação laboral e esmiuçar razões e argumentos para sustentar a sua desconformidade face à letra e sentido da Constituição da República Portuguesa, foi o objectivo do seminário organizado faz hoje uma semana pela CGTP-IN.
A reunião decorreu em dois períodos, de manhã e de tarde, dirigidos por João Torres e Deolinda Machado, respectivamente, ambos encerrados pelo secretário-geral da Intersindical Nacional, Arménio Carlos. No final da iniciativa, o dirigente garantiu mesmo que no dia da entrada em vigor das novas normas, a central sindical vai dinamizar uma grande movimentação nas empresas e locais de trabalho para intensificar o esclarecimento e denúncia sobre o que está em causa e preparar a resposta de massas que se impõe por parte dos trabalhadores.
O Seminário «As Alterações à Legislação Laboral, o Direito do Trabalho e a Constituição da República», foi um vivo debate em que participaram dirigentes e activistas sindicais de vários sectores e de todo o País, juristas que trabalham junto das organizações representativas dos trabalhadores, e representantes de partidos que pediram a apreciação da constitucionalidade das normas que entram em vigor. A deputada Rita Rato fez uma breve intervenção em nome do PCP, durante a manhã.
Também durante a manhã, intervieram e responderam a questões colocadas os professores José João Abrantes e Fausto Leite. Já na segunda sessão, realizada nos mesmos moldes de troca de ideias e confrontação com a realidade dos locais de trabalho que só quem intervém no mundo do trabalho pode ter, os oradores foram os professores Leal Amado e João Reis.
Abordando diferentes perspectivas sobre a constitucionalidade e implicações da legislação laboral, todos os oradores centrais, quer nas suas intervenções, concordaram que com as alterações promovidas pelo Governo do PS (pese embora admitam que as normas que limitam a contratação a prazo podiam ter um efeito positivo se não fossem ultrapassadas por outras de sentido exactamente inverso que, acabam por anular os efeitos benévolos em boa parte), são violados princípios constitucionais como o da dignidade, da proporcionalidade e da não discriminação, e direitos fundamentais como à estabilidade no emprego, conciliação da vida pessoal e familiar com a vida laboral ou à contratação colectiva.
Claro ficou, igualmente, que a constitucionalização do direito do trabalho, que não é aliás uma singularidade da Constituição de Abril, obriga o Estado a não se colocar numa posição neutra no quadro das relações laborais desiguais. Mas, pelo contrário, outorga-lhe o papel de equilibrar uma relação que não é igual entre «empregadores» e «empregados», optando justamente pela parte mais desfavorecida nessa relação: os trabalhadores.
Dito de outro modo, o direito do trabalho não é, não pode ser, um direito de paridade, como no caso dos contratos civis em que se presume que as partes se equivalem. No direito do trabalho, não pode ganhar terreno a individualização das relações, por isso mesmo a contratação colectiva, o papel dos sindicatos, têm uma função económica e social central que deve ser preservada como garante da protecção de quem trabalha e do progresso.