A triste tradição

Correia da Fonseca

A mais de­sa­gra­dável no­tícia que a te­le­visão nos trouxe nos dias re­centes terá sido a da des­ti­tuição de Evo Mo­rales, pre­si­dente da Bo­lívia, na sequência de um golpe mi­litar. Não foi uma enorme sur­presa: é sa­bido que a uti­li­zação de mi­li­tares para travar ve­lei­dades de in­de­pen­dência po­lí­tica, ou apenas a sus­peita delas, de países sul-ame­ri­canos em face dos Es­tados Unidos é uma in­fame tra­dição norte-ame­ri­cana. Neste con­texto, o der­rube de Mo­rales foi apenas mais um caso, e um caso tí­pico de resto pre­vi­sível: além da de­sig­nação do par­tido que le­vara Evo à pre­si­dência in­cluir a pa­lavra «so­ci­a­lismo», o que no grande pa­trão do norte de­verá ter soado pes­si­ma­mente, acresce que Mo­rales tem no rosto claros si­nais da sua per­tença índia, o que pode ter para os Es­tados Unidos um travo de pro­vo­cação. Em ver­dade, o mo­delo USA para os pre­si­dentes no con­ti­nente ame­ri­cano é o de su­jeitos brutos, brancos, ten­den­ci­al­mente na­zi­fas­cistas e de pre­fe­rência mi­li­tares, gé­nero Bol­so­naro, que como se sabe além do mais é ca­pitão en­quanto não se au­to­pro­move a mais alto posto. Evo Mo­rales in­fringia cla­ra­mente essa trí­plice exi­gência e pagou esse facto com a des­ti­tuição. Graças ao já ha­bi­tual ser­viço pres­tado por mi­li­tares para tanto ex­pres­sa­mente re­cru­tados.

Fa­cil­mente adi­vi­nhá­veis

É claro que esta tra­dição de golpes que de um modo geral não será ex­ces­sivo clas­si­ficar de crip­to­fas­cistas, se não de fas­cistas «tout court», não honra a classe mi­litar sul-ame­ri­cana, mas dá imenso jeito ao que com enorme ge­ne­ro­si­dade po­demos de­signar como po­lí­tica ex­terna US para a Sul-Amé­rica: como bem nos lem­bra­remos, o mé­todo chegou a ser apli­cado du­rante anos no Brasil, que está longe de ser uma pe­quena re­pú­blica, e deixou nele um rasto de crimes vá­rios que in­cluiu o re­curso sis­te­má­tico à tor­tura. No caso da Bo­lívia e da des­ti­tuição de Evo, fa­çamos votos para que a bru­ta­li­dade não chegue tão longe, mas estes nossos votos serão mais sus­ten­tados por al­guma es­pe­rança que pela me­mória dos mé­todos US & Ali­ados, mais ade­qua­da­mente de­sig­ná­veis por US & Ser­ven­tuá­rios. En­ten­damo-nos até para não res­va­larmos para um op­ti­mismo que a me­mória não pode ava­lizar: a mais forte tra­dição mi­litar sul-ame­ri­cana em ma­téria de in­ter­ven­ções afinal po­lí­ticas não é a da de­fesa da de­mo­cracia e ao ser­viço dos povos. Assim, resta es­perar que al­guma re­sis­tência po­pular evite à Bo­lívia em geral, e a Evo Mo­rales em par­ti­cular, um des­tino que nos in­digne. Tal como já nos in­digna que mi­li­tares bo­li­vi­anos se te­nham pres­tado a agir contra a le­ga­li­dade de­mo­crá­tica, contra o seu povo, contra o que é de­sig­nável por «honra mi­litar». E em be­ne­fício de in­te­resses cujos con­tornos são fa­cil­mente adi­vi­nhá­veis.




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