Folclore – a caminho do futuro

Manuel Pires da Rocha

Fol­clore após a Re­vo­lução de Abril afirmou-se como factor de eman­ci­pação

Como acon­tece na ge­ne­ra­li­dade das coisas vivas, a clas­si­fi­cação só terá che­gado de­pois do acon­te­ci­mento. Pri­meiro o canto, a forma ta­lhada num tronco qual­quer, os corpos de­se­nhando-se no ter­reiro, o barro mol­dado para ser imagem ou uten­sílio; e só de­pois a ne­ces­si­dade de um termo que pu­desse sig­ni­ficar tão abun­dante cri­ação. Jun­taram-se em poucas le­tras as muitas to­adas, ob­jectos, en­can­ta­mentos, di­zeres, acre­di­tares e mais von­tades do povo nas­cidas para ser be­leza, e já se sabe do que se fala quando se diz Fol­clore. Não é aqui que se cui­dará de saber quando e porquê esta pa­lavra do norte se agradou destas terras a sul. O certo é que por cá ficou, tro­cando o K pelo C, man­tendo o sig­ni­fi­cado res­pei­tante às coisas do Povo.

E quem diz Povo diz Tra­balho, como tão bem En­gels deixou dito: «o tra­balho é a con­dição bá­sica e fun­da­mental de toda a vida hu­mana. E em tal grau que, até certo ponto, po­demos afirmar que o tra­balho criou o pró­prio ser hu­mano». Pois se o tra­balho fez o Homem, também lhe fez as fer­ra­mentas com que havia de trans­formar a vida e a re­a­li­dade - às vezes en­xada, ou­tras vezes canção, que assim é re­fe­rida pelo in­te­lec­tual e mi­li­tante co­mu­nista Lopes-Graça: «com­pa­nheira da vida e tra­ba­lhos do povo por­tu­guês, a canção segue-o do berço ao tú­mulo, ex­pri­mindo-lhe as ale­grias e as dores, as es­pe­ranças e as in­cer­tezas, o amor e a fé, re­tra­tando-lhe fi­el­mente a fi­si­o­nomia, o gé­nero de ocu­pa­ções, o pró­prio am­bi­ente ge­o­grá­fico, de tal ma­neira ela, a canção, o homem e a terra, onde uma flo­resce e o outro la­buta, e ama, e crê, e sonha, e a que en­trega por fim o corpo, formam uma uni­dade, um todo in­dis­so­lúvel». Por seu lado, Álvaro Cu­nhal dei­xaria dito que «nos can­ci­o­neiros dos tra­ba­lha­dores e dos cam­po­neses (…) re­velam-se as ori­gens mais pro­fundas da arte, a arte li­gada à vida e ex­pressão di­recta da cri­a­ti­vi­dade dos povos», acres­cen­tando que «os can­ci­o­neiros po­pu­lares, assim como os cantos e ritmos de tra­balho do povo por­tu­guês re­co­lhidos por Mi­chel Gi­a­co­metti no no­tável tra­balho que re­a­lizou co­la­bo­rando com Lopes-Graça, cons­ti­tuem um tes­te­munho de valor ini­gua­lável. As to­a­di­lhas de aboiar na lavra, os cantos na cava, na sacha, nas se­men­teiras, nas ceifas, nas ma­lhas, na va­reja da azei­tona, nas regas, nas tos­quias, no maçar do linho, no puxar a pedra, no alar das redes de pesca, cons­ti­tuem um emo­ci­o­nante pa­tri­mónio».

Fer­ra­menta dos des­tinos do Povo, nunca o Fol­clore po­deria passar pela His­tória sem que a His­tória pas­sasse por ele. E, por isso, é também seu o ter­ri­tório da luta de classes, antes e após a Re­vo­lução de Abril, num tempo em que sig­ni­fi­ca­tiva parte do pa­tri­mónio mu­sical do Fol­clore por­tu­guês tran­sitou dos am­bi­entes de tra­balho para o lugar da festa, por cá e um pouco por todo o Mundo (onde per­ma­nece traço de iden­ti­dade no seio das co­mu­ni­dades por­tu­guesas). A Re­vo­lução viria a per­mitir aos grupos fol­cló­ricos li­ber­tarem-se da con­dição de montra da cul­tura po­pular ofi­cial, so­mando-se ao res­tante mo­vi­mento as­so­ci­a­tivo para serem factor de eman­ci­pação – sob a forma de es­cola in­formal, de museu et­no­grá­fico, de lugar de re­flexão, de cri­ador que re­cusa o es­te­re­o­tipo. É que a arte po­pular não pode ser o pe­daço de me­mória que (ine­vi­ta­vel­mente) pouco a pouco vai mor­rendo. Pois então que seja - do Povo que a (re)criou - o traço ex­pres­sivo e ci­vi­li­za­ci­onal que vai tin­gindo o fu­turo.




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