– No centenário da 1ª. edição de Dez Dias que Abalaram o Mundo, de John Reed

Os dias que mudaram um país imenso

Domingos Lobo

«Ca­ma­rada Le­nine,
pelas fá­bricas su­adas
e campos arados,
pela pá­tria de ex­tremo a ex­tremo,
pelo vosso co­ração
e vosso nome,
ca­ma­rada,
nós pen­samos,
res­pi­ramos,
ba­ta­lhamos
e vi­vemos!...
»

Vla­dimir Mai­a­kovski

 

Dez Dias que Aba­laram o Mundo, de John Reed, teve a sua pri­meira edição nos Es­tados Unido em Março de 1919, se­guindo-se-lhe, nesse mesmo ano, mais quatro edi­ções. Pos­te­ri­or­mente, nu­me­rosas tra­du­ções da­riam a co­nhecer ao mundo este tes­te­munho sin­gular que des­creve um pe­ríodo ímpar na his­tória da hu­ma­ni­dade. Em 2019, cumpre-se, por­tanto, cem anos sobre a pu­bli­cação desta no­tável re­por­tagem, ba­fe­jada pelos pro­dí­gios dos grandes mo­vi­mentos de massas, sobre o que foi o mais pro­fícuo, justo e in­flu­ente acon­te­ci­mento po­lí­tico, re­vo­lu­ci­o­nário e his­tó­rico do sé­culo XX.

Este livro de Reed, im­pres­sivo e fi­de­digno tes­te­munho – obra de arte lhe chamou Egon Ervin Kisch, no texto O Jor­na­lista das Bar­ri­cadas, Arte en­ten­dida como uma parte da ver­dade vista por um tem­pe­ra­mento «re­vo­lu­ci­o­nário» , fala-nos dos com­bates do pro­le­ta­riado russo nesse ful­cral Ou­tubro de 1917, da saga so­frida e he­róica dos ho­mens e mu­lheres, esse povo de 160 mi­lhões de almas – o mais opri­mido de todo o mundo1 que ou­saram tomar nas mãos o seu pró­prio des­tino, er­guer a ferro e fogo uma outra re­a­li­dade e dar um sen­tido digno e justo à Vida. Este livro é um pe­daço de his­tória in­tensa – de his­tória tal como eu a vi. Não pre­tende ser mais do que um re­lato mi­nu­cioso da Re­vo­lução de No­vembro, quando os bol­che­vi­ques, à frente dos ope­rá­rios e sol­dados, to­maram o Poder de Es­tado na Rússia e o co­lo­caram nas mãos dos So­vi­etes.2

A tra­dução ir­re­pre­en­sível de Dez Dias que Aba­laram o Mundo, que as Edi­ções Avante! pro­du­ziram em 2017, in­se­rindo este livro, jus­ta­mente, nas Co­me­mo­ra­ções do Cen­te­nário da Re­vo­lução de Ou­tubro, ganha hoje, quando as de­ri­vantes po­lí­ticas do nosso tempo trom­be­teiam de novo ru­mores fundos e in­qui­e­tantes nos dis­cursos do ódio, do terror, da se­gre­gação, da usura imoral e dos es­pec­tros so­ezes da guerra, quando o im­pe­ri­a­lismo já mostra, sem eu­fe­mismos, a sua he­di­onda face, este livro de Reed al­cança, neste con­texto, uma di­mensão ética e po­lí­tica in­con­tor­ná­veis.

Livro fun­da­mental para se en­tender a com­ple­xi­dade das lutas, dos pro­jectos, dos avanços e re­cuos da Re­vo­lução, do po­de­roso cerco er­guido pelos ini­migos in­ternos e ex­ternos para o seu der­rube das suas con­quistas, as trai­ções, os blo­queios, as frentes de luta e os jogos de guerra – e, so­bre­tudo, o sen­tido com­ba­tivo e de­ter­mi­nado das massas pro­le­tá­rias co­man­dadas por Le­nine.

Raro também, no plano li­te­rário, pela cla­reza ex­po­si­tiva do dis­curso, no modo como o autor tes­te­munha, des­creve e exalta os acon­te­ci­mentos vi­vidos em Pe­tro­grado nos meses fre­né­ticos de 1917, no épico que emana destas pá­ginas, nos de­ta­lhes da des­crição, de quem sabe, como o sabia o nosso Fernão Lopes na sua Cró­nica do Cerco de Lisboa, que está a des­crever um mo­mento alto da his­tória da hu­ma­ni­dade e sobre ela, e os seus prin­ci­pais pro­ta­go­nistas, traça com apuro es­ti­lís­tico um quadro de ver­dade, de ar­re­ba­ta­mento e jú­bilo, pol­vi­lhados, nos raros mo­mentos desse per­curso, por algum de­sâ­nimo face aos nu­me­rosos obs­tá­culos, à ig­no­mínia, à per­fídia dos que, com vastos re­cursos, se opu­nham ao mudar da His­tória. Reed, sendo um pri­vi­le­giado ob­ser­vador desses acon­te­ci­mentos, não es­cusou um olhar ar­guto sobre o real que per­cep­ci­onou e essa con­dição foi de­ter­mi­nante no modo como en­cenou o fac­tual.

Por isso, pelo modo como a ver­dade ex­plo­siva desses dias nos é nar­rada, este livro de Reed é, se­gu­ra­mente, um dos li­vros ines­ti­má­veis, tanto na abor­dagem sin­gular dos con­teúdos jor­na­lís­ticos, como na his­tória da li­te­ra­tura con­tem­po­rânea (con­si­de­rado obra de arte li­te­rária), pelo ex­pres­sivo nu­clear do que re­vela, en­quanto do­cu­mento his­tó­rico, im­pres­cin­dível con­tri­buto cul­tural e po­lí­tico, do mais pro­tu­be­rante sig­ni­fi­cado, para a com­pre­ensão di­a­léc­tica e crí­tica dos pri­meiros dias da Re­vo­lução de Ou­tubro.

Os do­cu­mentos anexos, a pro­fusão e ra­ri­dade das fo­to­gra­fias das mar­cantes ocor­rên­cias his­tó­ricas, es­pe­lhando a luta e o fu­turo a brotar das ruas de Pe­tro­grado, da Duma Mu­ni­cipal, dos con­frontos entre men­che­vi­ques e bol­che­vi­ques, entre o poder bur­guês e re­ac­ci­o­nário atre­lado a Ké­renski e o poder re­vo­lu­ci­o­nário dos so­vi­etes che­fi­ados por Kri­lenko, Trótski e Lé­nine, que a pena de John Reed, de forma ad­mi­rável e co­ra­josa, des­creve com ri­go­roso, as­ser­tivo em­penho, in­tro­du­zindo na prosa, em­pol­gantes e pre­mentes actos do com­bate po­lí­tico e ide­o­ló­gico, sa­bendo que tem, pe­rante os factos que tes­te­munha, o dever de os trans­mitir aos vin­douros, de os tornar pe­renes para que se não es­queça que num enorme país di­vi­dido por dois con­ti­nentes, nos al­vores do sé­culo XX, en­fren­tando os hor­rores da Pri­meira Guerra Mun­dial e uma cri­mi­nosa guerra civil, os tra­ba­lha­dores russos sou­beram unir-se e er­guer-se contra a opressão cza­rista, os grandes se­nhores da terra, os ban­queiros, os sa­bo­ta­dores e os abas­tados co­mer­ci­antes, e cons­truir um país novo: a utopia era, afinal, pos­sível e o sonho de ge­ra­ções tor­nara-se re­a­li­dade. Marx, En­gels, Le­nine ti­nham, afinal, razão: o povo miúdo podia, se or­ga­ni­zado no seu Par­tido de classe, as­cender ao poder e le­vantar-se do chão.

O modo atento, heu­rís­tico como esta edição foi pre­pa­rada, o em­penho edi­to­rial num do­cu­mento ver­da­dei­ra­mente his­tó­rico, cul­mi­nando com um no­tável Pos­fácio que per­corre e sin­te­tiza, à luz das ques­tões da ac­tu­a­li­dade his­tó­rica, o livro de Reed, tornam esta edição exem­plar a me­recer lei­tura, ou re­lei­tura, atenta para o que nele se diz e conta. Lei­tura que per­mite aos mais cép­ticos des­montar a pro­pa­ganda frau­du­lenta, a in­sídia que du­rante dé­cadas en­volveu e tentou sub­verter a ver­dade his­tó­rica do maior acon­te­ci­mento so­cial, po­lí­tico, cul­tural e hu­ma­nista do sé­culo XX: a Re­vo­lução Russa de 1917 e a to­mada do Poder de Es­tado pelos So­vi­etes..

John Reed, nasceu em Por­tland, a 20 de Ou­tubro de 1887, oriundo de uma fa­mília da média bur­guesia. Fre­quentou uma es­cola par­ti­cular em Mor­ristow, Nova Jérsia, e fez os seus es­tudos aca­dé­micos na Uni­ver­si­dade de Har­vard, pela qual se li­cen­ciou em 1910. A Amé­rica vivia então uma efer­ves­cente época de con­fronto e de­bate ide­o­ló­gico e Reed, in­te­res­sado nos mo­vi­mentos so­ciais do seu tempo, co­meça a fre­quentar as ac­ti­vi­dades do Clube So­ci­a­lista.

Tra­ba­lhou como fre­e­lancer em vá­rios jor­nais, com co­la­bo­ração mais de­mo­rada no jornal pro­gres­sista The Masses. Dele afirmou o seu com­pa­nheiro de lutas Al­bert Rhys Wil­liams: Reed tinha uma in­te­li­gência des­perta e aguda, um tem­pe­ra­mento de lu­tador, um es­pí­rito in­tré­pido e va­lente.

São estas qua­li­dades e em­penho cí­vico que lhe per­mi­tiram ter o pri­vi­légio de par­ti­cipar e tes­te­mu­nhar, nessa vi­agem aven­tu­rosa mas fas­ci­nante pela Rússia, vi­vendo a azá­fama, o de­sâ­nimo e o jú­bilo dos dias sô­fregos, os dias plenos que an­te­ce­deram a Re­vo­lução de Ou­tubro, sendo-lhe fa­cul­tado, graças à sua de­ter­mi­nação, co­ragem e cum­pli­ci­dade re­vo­lu­ci­o­nária, pe­ne­trar no centro nu­clear das ope­ra­ções, pre­sen­ciar a ver­tigem dos acon­te­ci­mentos que trans­for­ma­riam um país rural, anal­fa­beto, de es­tru­tura feudal, o país pobre e sub­nu­trido, le­gado por Ni­colau II e Ké­renski, na Rússia dos So­vi­etes, pro­gres­sista, igua­li­tária e livre da ex­plo­ração do homem pelo homem. Um vasto país que saía, nesses dez dias de luta in­frene, da pré-his­tória da hu­ma­ni­dade, sob a égide con­cep­tual do mar­xismo e ini­ciar um novo es­tágio da es­pe­rança e da dig­ni­dade, um tempo exem­plar e único. Desse pri­vi­légio, e do modo como a que a ele se ateve, nasceu Dez Dias que Aba­laram o Mundo,

Os pró­ceres do seu país, os Es­tados Unidos, não po­diam ficar alheios às ac­ti­vi­dades re­vo­lu­ci­o­ná­rias de John Reed. Não lhe per­do­aram o fervor e a luta pela de­fesa de um ideal de jus­tiça e razão a favor dos ex­plo­rados. Quando re­gressou, tinha a es­perá-lo um kaf­kiano pro­cesso, mas re­ve­lador das prá­ticas per­se­cu­tó­rias do im­pe­ri­a­lismo, por cam­panha an­ti­mi­li­ta­rista. Reed, de­ter­mi­nado, não de­sistiu de lutar pelos di­reitos do povo russo, de­nun­ci­ando os em­bargos, as pres­sões, a bar­bárie, a car­ni­fi­cina per­pe­trada pelo ca­pi­ta­lismo para es­tran­gular a Pá­tria dos So­vi­etes. Ainda Egon Ervin Kisch, no texto ci­tado: Reed «or­ga­nizou co­mí­cios mons­tros em quase todas as ci­dades dos E. U. para dizer ao pro­le­ta­riado e ao povo ame­ri­cano o que fora a Re­vo­lução Russa. Es­teve preso uma in­fi­ni­dade de vezes.» Fun­dará, após as ci­sões ve­ri­fi­cadas no Par­tido So­ci­a­lista dos Es­tados Unidos, o Par­tido Co­mu­nista Ope­rário, que di­rigiu.

Estes e ou­tros acon­te­ci­mentos do per­curso cí­vico, pes­soal e jor­na­lís­tico de John Reed, são abor­dados, com o rigor pos­sível numa pro­dução de Hollywood, no filme épico de Warren Be­atty, Reds, de 1981, com guião es­crito a partir de Dez Dias que Aba­laram o Mundo e de notas bi­o­grá­ficas do autor e dos seus com­pa­nheiros de jor­nada, entre os quais John Howard Lawson. O filme, que foi um êxito mun­dial, contou com as in­ter­pre­ta­ções de Warren Be­atty, Diane Ke­aton, Jack Ni­cholson e Mau­reen Sta­pleton, e seria agra­ciado com ós­cares, entre os quais o de me­lhor re­a­li­zador.

Esta edição da Avante!, vem acom­pa­nhado por um CD que contém o clás­sico Ou­tubro, do re­a­li­zador Ser­guei Ei­sens­tein, cujo guião en­cena, em parte, os acon­te­ci­mentos des­critos por John Reed. Livro e filme, cada qual a seu modo, narram e am­pliam o sig­ni­fi­cado pon­de­roso e his­tó­rico desses dias in­tensos e pe­renes - sinal, ba­lu­arte e es­pe­rança de todos os ex­plo­rados e da hu­ma­ni­dade em geral.

Eu vi o fu­turo a acon­tecer, afir­maria o jor­na­lista ame­ri­cano Lin­coln Stef­fens quando, em 1919, vi­sitou a pá­tria dos so­vi­etes.

O nome de John Reed, es­creve N. K. Krúps­kaia num dos pre­fá­cios que acom­pa­nham a edição, está in­dis­so­lu­vel­mente li­gado à Re­vo­lução Russa. A Rússia So­vié­tica tornou-se pró­xima e cara para ele. Foi atin­gido pelo tifo, e jaz hoje junto à base da Mu­ralha Ver­melha do Krémlin. Tendo des­crito tão bem a morte dos muitos már­tires da Re­vo­lução, John Reed me­rece esta honra. Mesmo ao lado do tú­mulo de Le­nine.

 

Era capaz de de­vorar a bu­ro­cracia.
Não tenho res­peito pelos do­cu­mentos.
Ao diabo man­daria todos os pa­péis. Mas este...
Tiro dos meus bolsos fundos um ates­tado de ines­ti­mável peso.
Leiam bem, in­vejem: eu sou ci­dadão da União So­vié­tica!”

Ex­certo do poema “Versos sobre um pas­sa­porte so­vié­tico”

Vla­dimir Mai­a­kovski

1 John Reed, Pre­fácio a Dez Dias que Aba­laram o Mundo

2 John Reed, idem, p.29, edição Pá­gina a Pá­gina/​2017




Mais artigos de: Temas

PCP solidário com a luta dos povos na América Latina

SO­LI­DA­RI­E­DADE Nos dias 12 e 13 de De­zembro, re­a­lizou-se na Ci­dade do Pa­namá a 12.ª sessão ple­nária da As­sem­bleia Par­la­mentar Euro-La­tino-ame­ri­cana (EU­ROLAT). Sandra Pe­reira, de­pu­tada do PCP no Par­la­mento Eu­ropeu e Vice-Pre­si­dente da EU­ROLAT, par­ti­cipou nos tra­ba­lhos.