Saber deles

Correia da Fonseca

Uma da­quelas in­for­ma­ções que surgem nos ro­dapés dos te­le­vi­sores e por isso correm o risco de serem con­si­de­radas de in­te­resse menor dava-nos conta, um dia destes, do novo valor do cha­mado «ren­di­mento so­li­dário para idosos». Era coisa pouca, de­certo porque quem de­cide estas coisas en­tende que eles, os ve­lhos, por vénia de­sig­nados por «idosos», já não estão em idade de fazer grandes des­pesas, mas o ren­di­mento so­li­dário e a no­tícia que se lhe re­feria re­ac­tu­a­li­zaram o mé­rito mí­nimo de nos lem­brarem que eles, os ve­lhos, existem e andam por aí, de­sig­na­da­mente os que ainda podem andar. Não é que a te­le­visão por­tu­guesa tenha uma total ten­dência para es­quecê-los: pelo con­trário, com re­la­tiva frequência no-los mostra, ainda que por poucos se­gundos e cu­ri­o­sa­mente quase sempre a jogar às cartas ao ar livre. En­tende-se. Um ba­ralho de cartas é um ma­te­rial «des­por­tivo» ba­rato, fa­cil­mente trans­por­tável e em prin­cípio du­ra­douro, tudo cir­cuns­tân­cias com­pa­tí­veis com as con­di­ções em que eles, os ve­lhos, vão so­bre­vi­vendo. O que não sig­ni­fica que a sua mun­di­vi­dência se es­gote no jogo da sueca e nas es­tra­té­gias que ele per­mite.

A prazo

Con­tudo, é óbvio que os ho­ri­zontes dos ve­lhos, mesmo se li­mi­tados, não se es­gotam no es­paço de um jardim pú­blico quando não chove e num ba­ralho de cartas já com muito uso: eles hão-de ter casa, fa­mília, um pa­tri­mónio de me­mó­rias e nos­tal­gias, pre­o­cu­pa­ções, por­ven­tura ainda pro­jetos e es­pe­ranças, in­te­resse pelo que vai no mundo largo. Muitos deles, diz-se que cada vez em maior nú­mero, in­vestem os dias que a re­forma deixou va­zios para fa­zerem apren­di­za­gens que eram in­com­pa­tí­veis com os ho­rá­rios da vida pro­fis­si­onal: há poucos dias vimos uma vi­sita aos es­tú­dios da TVI de um nu­me­roso grupo de «ve­lhos» or­ga­ni­zados em Ofi­cina de Sa­beres. Ou­tros con­ti­nuam a tra­ba­lhar em re­gime muito livre, e es­crevem, aplicam-se em pe­quenos ar­te­sa­natos ou fazem vo­lun­ta­riado em or­ga­nismos de saúde pú­blica. Em suma, bem se pode dizer que os ve­lhos con­subs­tan­ciam um mundo pe­cu­liar que aliás é em prin­cípio o des­tino na­tural de cada um de nós. Por isso não será ex­ces­sivo dizer que esse con­creto mundo dis­sol­vido no con­junto da so­ci­e­dade é para a TV e o seu jor­na­lismo um tema de in­ves­ti­gação e re­por­tagem que de­veria ser im­pe­ra­tivo mas que câ­maras e mi­cro­fones ra­ra­mente fre­quentam. Bem se pode dizer que, quanto aos ve­lhos e para além do quase sim­bó­lico ba­ralho de cartas, a te­le­visão não quer saber deles. O que em rigor sig­ni­fica que, a prazo, não quer saber de cada um de nós.



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