- Nº 2409 (2020/01/30)

TV ódio?

Argumentos

Ao que muitos sinais indicam e a televisão, diligentíssima, nos informa alegadamente, Isabel dos Santos terá confundido abundantes verbas decorrentes de actividades públicas com as suas próprias contas bancárias: o fenómeno estará por provar mas não é absurdo tendo em vista a generalização de ocorrências semelhantes em vários lugares de África. Aconteceu até que, em tempos, no decurso de uma visita do Presidente Marcelo a Moçambique, o tema foi aflorado perante as câmaras e os microfones da televisão, e pudemos então ouvir o comentário de um dirigente moçambicano, qualquer coisa como isto: «-Sabe?, tudo quanto sabemos aprendemo-lo com os portugueses!» Uma resposta decerto para lembrar quando o tema da corrupção africana vem à tona da conversa. É óbvio que a eventual generalização dos casos de pilhagem de bens públicos por gestores do Estado de modo nenhum implica que eles sejam aceites e/ou perdoados, mas lembrar a sua condição tendencialmente epidémica ajuda a situá-los. E se um dia os focos investigadores se voltarem para a Europa ou outros lugares do mundo poderemos conhecer, ou não, a extensão da maleita e porventura também os diversos modus operandi que ela assume nas diversas latitudes.

Ainda

Aconteceu, pois, que a televisão portuguesa se aplicou a denunciar a ilegitimidade da fortuna de Isabel dos Santos, o que é inteiramente compatível com o seu dever de denúncia de casos condenáveis. O que haverá a observar quanto a essa denúncia, porém, é não tanto a penúria das provas apresentadas, pois bem se sabe como é difícil reuni-las, mas o tom agressivo que caracterizou a informação. Isabel dos Santos ter-se-á, ou não, apropriado de fundos públicos, mas a confirmar-se a acusação não será caso para espanto: como já acima foi dito, em estados africanos que acederam à independência há poucas décadas esse feio fenómeno, acontecido quase sempre a coberto de uma legitimidade fabricada ad hoc, é quase «viral», como agora se diz. Raramente, porém, a informação vem marcada por um tom de tão intensa agressividade quanto o que foi agora usado contra Isabel dos Santos. E esse tom justifica uma interrogação, «porquê?», e permite que se aponte uma resposta: porque Isabel é filha de José Eduardo dos Santos, líder do MPLA que em alguma medida ainda é símbolo da independência de Angola que alguma sensibilidade colonialista portuguesa ainda não digeriu. Assim, a reportagem sobre o «caso» de Isabel dos Santos veio marcada por um acento de ódio que ultrapassa o tema e se tornou pretexto. Para um desabafo. Ainda de cepa colonialista.


Correia da Fonseca