Viagem de Inverno, de Elfriede Jelinek

Domingos Lobo

Um re­en­contro com a nossa me­mória co­lec­tiva

O su­jeito está em nós de­sa­bi­tado, fa­zemos a ab­surda vi­agem sobre um chão po­roso e breve em que já nada conta. Dessa pas­sagem, o Passar já passou sempre, que marcas dei­xamos, que si­nais de nós per­ma­necem na po­eira dos dias. Que an­gústia nos tolhe e corrói, que mundo vir­tual co­lhemos no Passar e dele que faca nos fere as en­tra­nhas, que dores nos anoi­tecem. Olhamos o mundo, que­remo-lo outro e me­lhor, mas que eco têm os nossos gritos. Existem mi­lhares de vozes a clamar num de­serto de som­bras, de ini­qui­dade, de medo, de per­ple­xi­dade. Que rosto nos da­remos para além do que diz o es­tupor da clau­sura, ou apenas a boca de Na­tascha Kum­pusch (Sara Ca­ri­nhas) que apa­rece ver­tido num écran, me­nina se­ques­trada aos dez anos e man­tida em ca­ti­veiro du­rante oito. A culpa terá sido nossa, do nosso alhe­a­mento, mas nós também somos ví­timas, vi­vemos en­clau­su­rados, sub­mersos na má­quina tri­tu­ra­dora que o ca­pi­ta­lismo in­ventou como forma de do­mínio, de sub­missão: O que é que ela tem de mais, a ví­tima, que é que ela tem de mais, afinal?

Mesmo quando a banca, e suas fraudes de tra­pe­zista im­pante, vai à fa­lência, somos nós que pa­gamos tais des­mandos. Em­pe­nhamos o fu­turo e os pro­testos morrem num túnel com ténue luz ao fundo, que só al­guns en­xergam. A me­mória do na­zismo, a mu­lher tor­nada ob­jecto mer­can­ti­li­zado pela usura, a ga­nância que des­trói até os sím­bolos mai­ores do edi­fício da cul­tura bur­guesa, como o ca­sa­mento: um mundo agiota em que tudo tem um preço, até os gestos inó­cuos. Não somos ino­centes. Se gri­tamos, quem nos ouve, em que chão plantar os cravos da re­volta, da in­sub­missão, se es­tamos cer­cados pelos olhos de lince da nova bar­bárie tec­no­ló­gica, en­clau­su­rados como Na­tascha Kum­pusch e por isso não la­men­tamos o seu es­tado. Também nós vi­gi­ados, con­tro­lados pela má­quina falaz do ca­pital, que nos quer fú­teis, quo­ti­di­anos e tri­bu­tá­veis, para nos pa­re­cermos com o des­vario em rede, o con­trário de qual­quer coisa ex­pur­gada de Ser.

Não apenas na Áus­tria de Je­linek, um país que trans­porta, do na­zismo, fe­ridas que san­gram, se fixa esta tor­rente dis­cur­siva, com res­so­nân­cias bec­ke­ti­anas, em que a pa­lavra emerge so­be­rana em oito be­lís­simos e cruéis textos, que vão beber a sua subs­tância lí­rica a Wi­lhelm Müller e às can­ções de Franz Schu­bert, mas são igual­mente re­flexão in­qui­ri­dora, séria e lú­cida sobre a Eu­ropa ne­o­li­beral que nos ar­rasta, em pro­cesso ace­le­rado, para a de­su­ma­ni­zação.

Numa das úl­timas sequên­cias do texto, entre a lou­cura e a carga ter­rível do pas­sado, nos diá­logos entre pai e filha, são ní­tidas as re­fe­rên­cias au­to­bi­o­grá­ficas da au­tora, num pro­cesso de iden­ti­dade e de re­com­po­sição do eu. Também modo de re­en­contro com a nossa me­mória co­lec­tiva, essa es­tranha velha que nos alerta, re­pe­tindo sempre a mesma canção.

Vi­agem de In­verno, pri­meira pro­dução, em 2020, da Com­pa­nhia de Te­atro de Al­mada, jus­ti­fica ple­na­mente a ida ao Te­atro Mu­ni­cipal Jo­a­quim Be­nite. Logo, pela pro­fi­ci­ente di­recção e a eficaz con­cep­tu­a­li­zação do es­paço, de Nuno Ca­ri­nhas, a que se juntam as in­ter­pre­ta­ções exem­plares, num re­gisto a tocar os li­mites do im­pro­vável, de três grandes ac­trizes, Ana Cris, Flávia Gusmão e Te­resa Ga­feira, dando corpo e voz ao di­fícil, ab­sor­vente e com­plexo texto da au­tora de O Pi­a­nista, Prémio Nobel de Li­te­ra­tura, em 2004.




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