Não deixes que a noite se apague, de Domingos Lobo

Sérgio de Sousa

A peça parte de um epi­sódio real da re­sis­tência ao fas­cismo

In­ter­valo - Grupo de Te­atro leva à cena, no Au­di­tório Lourdes Nor­berto em es­treia ab­so­luta, Não deixes que a noite se apague, de Do­mingos Lobo, Prémio Na­ci­onal de Te­atro Ber­nardo San­ta­reno 2009.

A partir dum epi­sódio real da luta clan­des­tina contra a di­ta­dura fas­cista de Sa­lazar, con­tado ao autor por um in­ter­ve­ni­ente na­quele, a peça foi con­ge­mi­nada, as per­so­na­gens re­cri­adas, e agora adap­tada e en­ce­nada por Silva Hen­ri­ques.

A acção passa-se no início dos anos 60, eclo­dira em An­gola a guerra contra a po­tência co­lo­ni­za­dora, Sa­lazar manda que para lá se avance, ra­pi­da­mente e em força; por cá, na zona do la­ti­fúndio, luta-se pelo fim do tra­balho no campo de sol-a-sol; na Uni­ver­si­dade cresce a re­volta es­tu­dantil.

Ri­cardo, jovem mi­li­tante do PCP com a ta­refa de or­ga­nizar a luta dos ru­rais no Ri­ba­tejo, per­se­guido pela PIDE, es­capa à em­bos­cada mon­tada pelo Ins­pector An­tunes do Ó na Es­tação do En­tron­ca­mento e es­conde-se na casa de apoio pre­pa­rada para o aco­lher, segue na sua ac­ti­vi­dade; casa dum com­pa­nheiro, au­sente, está a mu­lher, Isabel.

De meia-idade, mu­lher tra­di­ci­onal, vai à missa, con­fessa-se; sabe que vive no mundo onde do homem se es­pera te­me­ri­dade, da mu­lher apoio, cui­dados. «Passei a vida a en­cerar estes so­a­lhos, a limpar o pó». Desde a pri­meira cena re­vela-se re­fle­xiva, se­rena, bela. De­pois, não se dei­xará lu­di­briar pelas falas cap­ci­osas do Padre, nem ce­derá à pressão in­ti­mi­da­tiva do Ins­pector. Sobre ela a luz de cena con­fere-lhe lu­mi­no­si­dade tran­quila.

An­tunes do Ó, tor­ci­o­nário, brutal mas não bronco, um ja­vardo ar­guto; res­sa­biado com chefes a quem obe­dece, capaz de exe­cutar qual­quer bes­ti­a­li­dade com ódio, ou des­prezo, ou gozo sá­dico. Con­siste numa cri­ação maior de Do­mingos Lobo, que re­a­pa­re­cerá nou­tros textos seus, de­sig­na­da­mente no ro­mance Car­to­grafia de Ossos exi­bindo o seu poder cal­cu­lista, as­sas­sino, ab­jecto e im­pune, até ao dia em que o autor lhe dará ter­rí­fica morte.

Na ac­tual re­pre­sen­tação, André Levy trans­mite todos os traços, até con­tra­di­tó­rios, da re­pe­lente per­so­nagem numa fala sempre con­tida, mar­cando com bre­vís­simas pausas as pas­sa­gens de um a outro da­queles. Ex­ce­lente.

Bem com­posta por Mi­guel de Al­meida em pos­turas e en­to­a­ções, a per­so­nagem do In­for­mador.

Acerto da lei­tura de Silva Hen­ri­ques e na en­ce­nação, re­sol­vendo bem di­fi­cul­dades como, dado o palco pe­queno si­tuar o quarto/​re­fúgio de Ri­cardo fora de cena, uti­lizar uma porta no centro alto a su­bli­nhar mu­danças de es­paços de­fi­nidos pela ilu­mi­nação.

An­tunes do Ó aperta o cerco ao clan­des­tino, e a en­troncar nesta his­tória, outra, de Te­o­do­miro, o ma­rido de Isabel, «Tantos anos a en­ganar-me, a en­ganar os ou­tros, a mentir-me. Estou can­sado, muito can­sado»; não vol­tará para junto dela, op­tará di­fe­ren­te­mente, perto do final pro­fe­rirá: «Hoje, é o co­meço...»

O su­foco da opressão con­tinua a urdir-se nos con­luios entre Ins­pector, Sar­gento, In­for­mador e Padre.

No mo­mento ful­cral da peça, o con­fronto de Isabel com An­tunes do Ó, ela evolui, hábil, se­gura, e é ele quem então se re­tira.

O fas­cismo per­du­rará nos 13 anos da Guerra Co­lo­nial. Ri­cardo e Isabel serão presos; antes dir-se-ão:

«Que bi­zarras vidas ti­vemos, que cla­mores sen­timos, que an­gús­tias atra­ves­sámos com pa­la­vras de fu­turo fer­men­tando em lá­bios agri­lho­ados. [...] por que assim nos demos às ideias, que por elas mor­remos».

«Estou agora la­vada e forte. Sou de novo livre, sol­teira e já te posso amar como quero.»

 

Não deixes que a noite se apague, de Do­mingos Lobo, pelo In­ter­valo – Grupo de Te­atro. Te­atro Lourdes Nor­berto – Linda-a-Velha, às sextas e sá­bados, às 21h30




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