Cisne negro

António Santos

Du­rante sé­culos, julgou-se que os cisnes ne­gros eram uma qui­mera. Cu­ri­o­sa­mente, mesmo de­pois de a ci­ência ter res­ga­tado o pás­saro da mi­to­logia, a ex­pressão con­ti­nuou a de­signar uma im­pos­si­bi­li­dade. Mais re­cen­te­mente, os eco­no­mistas es­tado-uni­denses co­me­çaram a re­ferir-se a acon­te­ci­mentos ines­pe­rados com con­sequên­cias pro­fundas como «cisnes ne­gros». Esta se­mana, o go­ver­nador do Banco da Re­serva Fe­deral de St. Louis re­velou que es­pera que a taxa de de­sem­prego nos EUA possa ul­tra­passar os 30 por cento como con­sequência de um «cisne negro»: a ac­tual pan­demia de COVID-19.

De­pois de se­manas a des­va­lo­rizar o risco da epi­demia para a saúde pú­blica, Trump viu-se fi­nal­mente for­çado a de­clarar o es­tado de emer­gência, mas avi­sando que «a cura não pode ser pior que a do­ença», afas­tando assim a pos­si­bi­li­dade de uma qua­ren­tena drás­tica, ge­ne­ra­li­zada e pro­lon­gada, «Não po­demos perder estas em­presas», jus­ti­ficou. Para salvá-las, o mag­nata chefe do Es­tado irá aprovar, com o alto pa­tro­cínio dos de­mo­cratas, o maior pro­grama de ajuda fi­nan­ceira ao grande ca­pital da His­tória dos EUA: o de­creto CARES prevê que o go­verno fe­deral in­jecte, numa pri­meira fase, dois bi­liões de dó­lares di­rec­ta­mente nas em­presas e nos bancos. Si­mul­ta­ne­a­mente, a Re­serva Fe­deral anun­ciou a compra de tí­tulos de dí­vida do go­verno até 500 mil mi­lhões e de 200 mil mi­lhões em tí­tulos de em­presas.

Como sempre disse o di­ri­gente do Par­tido De­mo­crata, Rahm Ema­nuel, «nunca se deve des­per­diçar uma boa crise». As crises ca­pi­ta­listas não são sur­pre­en­dentes, são cí­clicas e fun­ci­onam como um me­ca­nismo de re­a­jus­ta­mento ne­ces­sário à sua so­bre­vi­vência. Se não fosse a ac­tual pan­demia, a crise po­deria ser li­gei­ra­mente pro­traída e as­somar sob qual­quer outro pre­texto, mas era tão ine­vi­tável como o ins­tinto de acu­mu­lação do sis­tema eco­nó­mico.
Mas esta crise ca­pi­ta­lista que agora co­meça tem três in­gre­di­entes po­ten­ci­al­mente ex­plo­sivos: Trump na pre­si­dência de uma so­ci­e­dade pro­fun­da­mente frac­tu­rada so­cial e po­li­ti­ca­mente; elei­ções ao virar do ca­len­dário e a cres­cente in­ca­pa­ci­dade dos EUA im­porem a sua he­ge­monia in­ter­na­ci­onal pela via eco­nó­mica. Se­gundo o Po­li­tico, o pre­si­dente pre­para-se para propor ao Con­gresso a sus­pensão de um con­junto de di­reitos e ga­ran­tias cons­ti­tu­ci­o­nais, como Ha­beas Corpus. Se­gundo a Newsweek, existe já um plano pronto para uma in­ter­venção dos mi­li­tares em zonas afec­tadas pelo co­ro­na­vírus que in­cluirá «buscas do­mi­ci­liá­rias, de­ten­ções e ad­mi­nis­tração mi­litar de grandes ci­dades». Outro plano fil­trado pela mesma pu­bli­cação, que res­ponde pelo có­digo de CON­PLAN 3502, prevê o re­curso do exér­cito a «mo­tins, actos de vi­o­lência, in­sur­rei­ções, ma­ni­fes­ta­ções ile­gais” sur­gidos no con­texto da ac­tual pan­demia. Se­gundo a Newsweek “os au­tores do plano de­sejam uma res­posta mi­litar rá­pida para quando as pes­soas pro­cu­rarem pro­tecção numa si­tu­ação de luta por co­mida e prevê a eva­cu­ação de Washington».

A his­tória do Lago dos Cisnes, de Tchay­kovsky, é outra me­tá­fora pro­funda e ines­pe­ra­da­mente per­tur­bada por um cisne negro: o prín­cipe Sig­fredo pre­para-se para de­clarar amor eterno à prin­cesa Odette, que­brando assim a mal­dição que a trans­formou num cisne branco. Im­pre­vi­si­vel­mente, um cisne negro entra em cena e, en­ga­nado, Sig­fredo acaba por ofe­recer-lhe o seu amor. Não está em causa que o sur­gi­mento do cisne negro fosse uma sur­presa para o prín­cipe, mas porque será que Sig­fredo não dis­tin­guiu o cisne branco, a sua amada Odette, de um cisne negro, a mal­vada Odília? É di­fícil acre­ditar que Sig­fredo não sou­besse o que es­tava a fazer quando o ines­pe­rado e a ex­cepção lhe sur­giram. Todos os grandes es­tados de ex­cepção, mesmo os mais ines­pe­rados cisnes ne­gros, re­pre­sentam opor­tu­ni­dades para con­cre­tizar an­seios an­tigos, para ex­pe­ri­mentar o que nunca tinha sido ex­pe­ri­men­tado, para trans­formar o tem­po­rário em per­ma­nente e para tornar o im­pen­sável acei­tável.




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