Tudo a ferver

Rui Fernandes

O en­vol­vi­mento das Forças Ar­madas tem de ser muito cri­te­rioso e obe­decer à Cons­ti­tuição e às leis da Re­pú­blica

No­tícia re­cente (DN de 26/​3) ano­tava que no Es­tado-Maior Ge­neral das Forças Ar­madas (CEMGFA) es­tava «tudo a ferver» (sic) vi­sando a ope­ra­ci­o­na­li­zação das con­di­ções para a par­ti­ci­pação das Forças Ar­madas no quadro do com­bate ao surto epi­dé­mico. De per­meio, em­bora es­te­jamos em Por­tugal, é ilus­trada a si­tu­ação de Es­panha, é tra­zido à co­lação o re­cente acordo ope­ra­ci­onal es­ta­be­le­cido entre as Forças Ar­madas e as Forças de Se­gu­rança, por via da Se­cre­tária-Geral do Sis­tema de Se­gu­rança In­terna, é re­fe­ren­ciado o nú­mero de vo­lun­tá­rios ins­critos cor­res­pon­dendo ao apelo do CEMGFA, etc. Uma ver­da­deira «cal­dei­rada».

O pri­meiro re­gisto, mais a tí­tulo de cu­ri­o­si­dade, é ser um tra­balho jor­na­lís­tico de pro­moção do CEMGFA, coisa que em si mesmo nada tem de ne­ga­tivo. Há per­so­na­li­dades que gostam mais da dis­crição e ou­tras que apre­ciam mais a vi­si­bi­li­dade. Num ou noutro caso não é isso que de­ter­mina aquilo que im­porta.

O se­gundo re­gisto vai para a cha­mada a este «em­brulho» do acima re­fe­rido pro­to­colo. A que pro­pó­sito? Es­tamos no do­mínio de pro­blemas de se­gu­rança in­terna face a ame­aças que ne­ces­sitem de re­forço de meios ou de ca­pa­ci­dades? Ou será que, desta vez a pro­pó­sito do vírus, qual­quer pre­texto serve vi­sando sempre o mesmo ob­jec­tivo: em­pe­nhar por mi­li­tares na rua para darem or­dens e serem obe­de­cidos pelos ci­da­dãos. Ca­pi­ta­lizar o mo­mento e a cir­cuns­tância para pôr em prá­tica o plano de ar­ti­cu­lação das Forças Ar­madas com as Forças e Ser­viços de Se­gu­rança no âm­bito da se­gu­rança in­terna, fora do do­mínio es­tri­ta­mente sa­ni­tário não deve ser con­si­de­rado ino­por­tuno e não ade­quado?

Fique claro que não temos ne­nhum aná­tema re­la­ti­va­mente aos mi­li­tares. Toda a nossa in­ter­venção de anos em prol da sua dig­ni­dade e dig­ni­fi­cação e da dig­ni­fi­cação da Ins­ti­tuição Mi­litar provam-no. E é exac­ta­mente por isso que o seu en­vol­vi­mento tem de ser muito cri­te­rioso e deve obe­decer à Cons­ti­tuição e às leis da Re­pú­blica em vigor. Os apelos re­cor­rentes, e as «le­bres» postas a rolar com vista a esse de­si­de­rato, seja por ra­zões do ter­ro­rismo, por causa dos in­cên­dios e agora por mo­tivo do vírus, vi­olam e de­vassam os en­qua­dra­mentos cons­ti­tu­ci­o­nais e le­gais.

O ter­ceiro re­gisto, prende-se com os «vo­lun­tá­rios». As Forças Ar­madas não são uma ONG e os mi­li­tares, es­tejam nas si­tu­a­ções de ac­tivo, re­serva ou re­forma, obe­decem a re­gras que estão de­fi­nidas para a sua con­vo­cação em função das ne­ces­si­dades que se co­lo­quem e sejam iden­ti­fi­cadas. Há, além dessas re­gras es­pe­cí­ficas, leis de re­qui­sição civil que sendo «civil» também en­volvem os mi­li­tares, in­cluindo os da re­forma. Como ope­ração de mar­ke­ting, de pro­jecção das Forças Ar­madas na co­mu­ni­dade, até tendo pre­sente as co­nhe­cidas di­fi­cul­dades de re­cru­ta­mento, a essa luz, en­tende-se, mas não mais do que isso.

O quarto re­gisto, liga-se com o «tudo a ferver» e as com­pa­ra­ções com a Es­panha neste caso, como no caso ve­ri­fi­cado nos in­cên­dios. Nou­tros mo­mentos as com­pa­ra­ções foram com a França (caso dos acon­te­ci­mentos do Charlie Hebdo). Isto é, os en­qua­dra­mentos cons­ti­tu­ci­o­nais e le­gais na­ci­o­nais são so­ter­rados, com vista a evi­den­ciar e po­ten­ciar a ideia força de que isto só lá vai com os mi­li­tares a mandar. Em vez de ser va­lo­ri­zado o con­tri­buto que as Forças Ar­madas já estão a dar através da pro­dução no La­bo­ra­tório Mi­litar e con­se­quente dis­tri­buição dos pro­dutos, da dis­po­ni­bi­li­zação de tendas para ras­treio, do uso das ins­ta­la­ções do Hos­pital das Forças Ar­madas no Porto e a re­a­ber­tura do pólo da Ajuda do Hos­pital Mi­litar, em con­di­ções de poder re­tomar o seu papel li­gado com as do­enças in­fecto-con­ta­gi­osas, não. Ou seja, a ideia é que as mis­sões atri­buídas às Forças Ar­madas não devem ser as su­ple­tivas mas de outra na­tu­reza. Re­pete-se: não temos dú­vida de que há nas Forças Ar­madas pes­soas al­ta­mente pro­fis­si­o­nais e ca­pa­ci­tadas para cor­res­ponder ao que for so­li­ci­tado. Qual­quer ideia que possa existir de que as mis­sões su­ple­tivas são des­pri­mo­rosas, vi­ci­osas e hu­mi­lhantes para as Forças Ar­madas é, na nossa opi­nião, um erro grave.

Perto do 46º ani­ver­sário da Re­vo­lução de Abril, num con­texto al­te­rado por força do surto epi­dé­mico, os tra­ba­lha­dores e o povo não dei­xarão de o co­me­morar, «gran­do­lando» em cada casa, cada ja­nela, va­randa, rua ou beco. A es­pe­rança de Abril e a força de Maio afirmar-se-á.

A emer­gência de fazer avançar os va­lores e pro­jecto cons­tantes na Cons­ti­tuição ga­nhou nestes dias par­ti­cular ex­pressão e re­le­vância.




Mais artigos de: Argumentos

Para um teatro após o tempo escuro

Não é a primeira vez que os teatros fecham por causa de epidemias. Na Londres de Shakespeare encerraram em várias ocasiões devido à peste. Mas reabriram. Até que os Puritanos instalados no Poder os baniram por muitos anos. Os teatros porém, voltaram a abrir. Sempre. Nem a Censura, ao longo dos...

Resistência, resistências

Os diversos canais portugueses de televisão despejam nos ecrãs dos nossos televisores constantes informações acerca da pandemia que percorre o mundo e, se é certo que esse fluxo pode causar um efeito depressivo e reforçar o susto que todos em maior ou menor grau vivemos, será inegável que esse susto é tendencialmente...