Tempo de (algum) medo

Correia da Fonseca

«O medo vai ter tudo (…)», es­creveu um dia Ale­xandre O’­Neil num tempo em que o medo pos­sível tinha al­gumas ra­zões muito con­cretas. Hoje, o even­tual medo tem raízes es­pe­cí­ficas: é um medo que nos é ino­cu­lado por um ini­migo in­vi­sível que, dizem-nos, veio de longe, sem que se saiba ao certo quem o de­sen­ca­deou e quem dessas lon­juras o trans­portou para perto de nós, sobre esse ponto ha­vendo in­for­ma­ções di­versas e so­bre­tudo muito des­co­nhe­ci­mento. Uma coisa é certa: este medo apri­siona-nos, e neste quadro surge a te­le­visão como uma es­pécie de car­ce­reira be­né­vola que nos dá bons con­se­lhos e ade­quadas ori­en­ta­ções para que o medo não passe disso mesmo, de ser medo, para se trans­mutar em risco e/​ou coisa pior. É, pois, uma te­le­visão amiga e ten­den­ci­al­mente útil, em­bora acon­teça, neste caso como em muitos ou­tros, que entre a in­tenção da uti­li­dade e o re­sul­tado desse bom in­tuito possa haver uma dis­tância de trans­po­sição di­fícil.

Uma arte di­fícil

A te­le­visão vem, pois, en­treter-nos nestes dias di­fí­ceis e para al­guns lon­guís­simos que custam a passar. Aliás, en­treter-nos (pre­sume-se que no me­lhor dos sen­tido) é desde sempre um dos as­su­midos ob­jec­tivos da te­le­visão. Acon­tece, porém, que en­treter é uma ta­refa mais di­fícil do que possa pa­recer desde que o en­tre­te­ni­mento nunca possa con­fundir-se com em­par­ve­ci­mento, con­fusão pos­sível em que a te­le­visão, e não apenas ela, muitas vezes corre o risco de in­correr. É certo que, pelo menos em certo grau que na­tu­ral­mente de­se­jamos mí­nimo, pode-se por­ven­tura dizer que mais nos va­lerá fi­carmos parvos que mortos, mas con­virá de­certo que não se exa­gere nessa pre­fe­rência, e con­virá re­co­nhecer que a te­le­visão por­tu­guesa, toda ela, isto é, no con­junto dos di­versos ca­nais que a in­te­gram, não tem no­tá­veis an­te­ce­dentes nessa arte de facto muito di­fícil que é a de dis­trair sem queda abrupta da in­te­li­gência. O se­gredo dessa par­ti­cular efi­cácia es­tará por­ven­tura em não fa­ci­litar riscos, mas ha­verá nesta questão uma di­fi­cul­dade: lem­bremo-nos de tris­tís­simos pro­gramas «de co­média» que se re­ve­laram au­tên­ticas «dores de alma». Assim, para o te­les­pec­tador com al­guma exi­gência aliás sempre muito re­co­men­dável, emerge um outro medo, este ainda que me­no­rís­simo em con­fronto com o outro, o das ruas pa­rece emergir e tentar en­trar em nossas casas. Es­pe­remos que todos esses medos se dis­solvam nos dias pró­ximos. E fa­çamos por isso. Se pos­sível, com a ajuda da te­le­visão.




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