Donald, apetece-lhes algo americano

António Santos

Se há coisa em que os EUA são mesmo os me­lhores do mundo, é na ci­ência do golpe de Es­tado. Pa­la­ciano ou mi­litar, putch ou re­vo­lução co­lo­rida, anti-ter­ro­rista ou hu­ma­ni­tário, o que é certo é que nos úl­timos 75 anos não houve uma única ad­mi­nis­tração ame­ri­cana que não ti­vesse or­ques­trado al­gures no mundo uma ope­ração gol­pista de algum tipo ou feitio. O que im­pede um in­qui­lino da Casa Branca de usar na pró­pria casa toda essa ex­pe­ri­ência in­ter­na­ci­onal, essa in­teira ci­ência mil vezes tes­tada, esses quase in­fi­nitos re­cursos mi­li­tares, fi­nan­ceiros e tec­no­ló­gicos? Esta se­mana, o bi­li­o­nário Elon Musk re­plicou à acu­sação de en­vol­vi­mento es­tado-uni­dense no golpe contra o go­verno de Evo Mo­rales, na Bo­lívia, com ad­missão pú­blica: «Fa­zemos golpes onde nos ape­tecer». E é ver­dade. Até nos EUA.

Se a ideia de um golpe de Es­tado nos EUA, se­guido da ins­tau­ração de uma di­ta­dura pre­si­den­cial, pa­recer uma ideia lon­gínqua, é avi­sado reler a sur­presa com que Isabel Al­lende des­creve o golpe de 73: «Achá­vamos que golpes mi­li­tares eram coisas que acon­te­ciam nas Re­pú­blicas das Ba­nanas, al­gures na Amé­rica Cen­tral. Nunca acon­te­ceria no Chile. E de­pois acon­teceu». O pró­prio Joe Biden, no­meado pre­si­den­cial do Par­tido De­mo­crata, ad­mitiu que a pers­pec­tiva de Trump ocupar a Casa Branca pela via gol­pista é o seu «maior pe­sa­delo». Seria, aliás, um pe­sa­delo re­cor­rente. Há 20 anos, o Su­premo Tri­bunal travou a re­con­tagem dos votos da Flo­rida que con­de­na­riam a eleição de Ge­orge W. Bush. O Par­tido De­mo­crata re­velou-se im­po­tente, ou de­sin­te­res­sado, em im­pedir a usur­pação da sala oval.

Quando Trump, na se­mana pas­sada, mo­bi­lizou, mi­lhares de pa­ra­mi­li­tares não iden­ti­fi­cados para re­primir os pro­testos anti-ra­cistas nas ruas de Por­tland, no Óregon, es­tava a en­saiar um golpe de Es­tado. Fê-lo contra a von­tade ex­pressa desse Es­tado, do exe­cu­tivo da ci­dade e dos seus con­gres­sistas, to­mando cui­da­do­sa­mente o pulso à re­acção de­mo­crata. Fê-lo tes­tando as agên­cias fe­de­rais em que confia: como o De­par­ta­mento de Se­gu­rança In­terna (DHS na siga in­glesa), os US Marshals, o ICE, o BORTAC e a Guarda Cos­teira. Fê-lo exer­cendo um nível de re­pressão ex­tra­ju­di­cial a que a União Ame­ri­cana pelas Li­ber­dades Civis chamou de «crise cons­ti­tu­ci­onal». Fê-lo pro­me­tendo fazê-lo a breve trecho nou­tras ci­dades go­ver­nadas pelos de­mo­cratas como Nova Iorque, Fi­la­délfia, De­troit, Bal­ti­more, Al­bu­querque, Cle­ve­land e Oa­kland. A si­tu­ação é tão tensa que Tom Ridge, an­tigo di­rector do DHS du­rante os man­datos de W. Bush e por­tanto in­sus­peito de ex­cesso de zelo de­mo­crata, disse ao Washington Post que a agência «não foi criada para ser a mi­lícia pes­soal do pre­si­dente». Em de­cla­ra­ções à mesma pu­bli­cação, Paul Ro­senzweig e Mi­chael Cher­toff, ou­tros dois an­tigos di­ri­gentes do DHS, ca­rac­te­ri­zaram a in­ter­venção como «in­cons­ti­tu­ci­onal» «pro­ble­má­tica» e «alar­mante».

Os en­saios de Trump para um even­tual golpe são ven­didos à classe do­mi­nante como uma so­lução eficaz para as ex­pec­tá­veis ex­plo­sões so­ciais que se avi­zi­nham. A sus­pensão dos des­pejos ca­ducou no dia 25 e, só no fim de Junho, 12 mi­lhões de pes­soas não con­se­guiram pagar a renda da casa. Todas as se­manas, mais 1,4 mi­lhões de tra­ba­lha­dores juntam-se aos 30 mi­lhões de de­sem­pre­gados. Apesar disso, esta se­gunda-feira, os re­pu­bli­canos anun­ci­aram no Se­nado que pla­neiam cortar o apoio ex­tra­or­di­nário aos de­sem­pre­gados de 600 para 200 dó­lares por se­mana. O ho­ri­zonte de mi­lhões de tra­ba­lha­dores é a mi­séria e o de­sam­paro.

A guerra civil de que, no séc. XIX, os con­fe­de­rados saíram der­ro­tados nunca sarou. Trump sabe-o. Pro­cura ha­bil­mente re­en­cenar a ba­talha pela «li­ber­dade dos Es­tados» sob o signo da pan­demia, in­ter­vindo agora em nome da pre­ser­vação da li­ber­dade, não de es­cra­vizar, mas de re­a­brir em­presas e es­colas sem más­caras, de re­primir pro­testos ou de ig­norar elei­ções. Há 160 anos o go­verno in­ter­veio no Sul. Agora fá-lo-á no Norte. Se aos Musks lhes ape­tecer, claro.




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