No centenário de Mário Castrim - a obra, o exemplo e a luta que continua

HO­ME­NAGEM Amanhã, 31 de Julho, faz 100 anos que nasceu Mário Cas­trim: jor­na­lista, crí­tico, es­critor, pro­fessor e mi­li­tante co­mu­nista. O PCP evoca-o numa sessão pú­blica em Lisboa, na qual par­ti­cipa o Se­cre­tário-geral Je­ró­nimo de Sousa e onde será apre­sen­tada a se­gunda com­pi­lação de po­emas que es­creveu para o Avante!.

Mário Cas­trim foi pi­o­neiro da crí­tica de te­le­visão em Por­tugal

Nas­cido em Ílhavo em 1920, Mário Cas­trim – pseu­dó­nimo de Ma­nuel Nunes da Fon­seca – ini­ciou-se ainda jovem no jor­na­lismo, pro­fissão que du­rante um tempo acu­mulou com a de pro­fessor no en­sino téc­nico pro­fis­si­onal. Foi no ves­per­tino Diário de Lisboa (onde per­ma­neceu até ao seu en­cer­ra­mento, em 1990) que se des­tacou, desde logo en­quanto crí­tico de te­le­visão (com a co­luna diária «Canal da Crí­tica»), de que foi em Por­tugal não só pi­o­neiro como má­ximo ex­po­ente. Era através da te­le­visão que, nas suas cró­nicas, lan­çava um olhar crí­tico – tantas vezes mordaz – sobre as in­jus­tiças e ini­qui­dades em Por­tugal e no mundo, que con­tri­buía para trans­formar.

Nesse mesmo jornal, criou e di­rigiu o su­ple­mento Diário de Lisboa Ju­venil, que teve forte in­fluência em muitos jo­vens por­tu­gueses, quer ao nível da vo­cação li­te­rária quer das con­vic­ções de­mo­crá­ticas. Quantos não fi­zeram aí a sua es­treia nas le­tras e na re­flexão – e, daí, na acção – an­ti­fas­cista?

Mário Cas­trim co­la­borou também com o se­ma­nário Tal & Qual e com o Avante!, onde pu­blicou nu­me­rosos ar­tigos, cró­nicas e po­emas. Al­guns destes estão com­pi­lados no livro Os Po­emas do Avante!, ao passo que ou­tros in­te­gram a obra Mais Po­emas do Avante!, que será amanhã apre­sen­tada em Lisboa.

É também autor de obras de li­te­ra­tura in­fantil e ju­venil, te­atro, po­esia e ainda de en­saio e cró­nica, entre os quais so­bres­saem Te­le­visão e Cen­sura e His­tó­rias da Te­le­visão Por­tu­guesa. Vá­rios dos seus textos estão pu­bli­cados em di­versas an­to­lo­gias.

As notas bi­o­grá­ficas atrás enun­ci­adas, sendo re­ve­la­doras de um per­curso pro­fis­si­onal ímpar que deixou um le­gado que ainda hoje per­dura, são ma­ni­fes­ta­mente in­su­fi­ci­entes para abarcar todo o rico, mul­ti­fa­ce­tado – e fas­ci­nante – per­curso de Mário Cas­trim. Mi­li­tante co­mu­nista desde o início da dé­cada de 1940, e até ao fim da sua vida, foi um des­ta­cado exemplo de in­te­lec­tual co­mu­nista, ac­ti­va­mente com­pro­me­tido com os ideais da li­ber­dade, da de­mo­cracia, do pro­gresso e da paz. Fê-lo através do seu tra­balho jor­na­lís­tico (en­fren­tando a cen­sura), dos co­ló­quios e ses­sões em que par­ti­cipou, da sua ac­ti­vi­dade po­lí­tica.

Quando morreu, em Ou­tubro de 2002, o seu Par­tido re­alçou a «des­ta­cada fi­gura da vida cí­vica e cul­tural do País nos úl­timos 50 anos», o «mi­li­tante co­mu­nista com muitas dé­cadas de co­ra­josa in­ter­venção», o «crí­tico de te­le­visão, es­critor e in­te­lec­tual que tanto con­tri­buiu para a for­mação de­mo­crá­tica e hu­ma­nista de muitas ge­ra­ções». Já o Sin­di­cato dos Jor­na­listas su­bli­nhava que o de­sa­pa­re­ci­mento de Mário Cas­trim «em­po­brece o pa­no­rama da co­mu­ni­cação so­cial por­tu­guesa na dupla ver­tente dos que a pro­duzem e dos que a in­ter­pelam», ga­ran­tindo porém que o seu le­gado per­ma­ne­ceria não só en­quanto «re­fe­rência his­tó­rica» mas também como exemplo de «homem culto e lú­cido, ci­dadão com­pro­me­tido com o seu tempo e fiel às suas con­vic­ções»

 

Cor­reia da Fon­seca

Mário

Co­nheci o Mário há muitos, muitos anos, num país cin­zento mas onde por vezes era pos­sível en­con­trar pre­ci­osos es­paços de luz. O Mário ainda não tinha trinta anos, eu ainda não tinha vinte, mas entre nós de­pressa se es­ta­be­leceu uma re­lação que se diria feita de vá­rios fios en­tre­la­çados, e foi uma re­lação tão forte, tão feita de tantos mo­tivos e ra­zões, que se alongou por muitas de­zenas de anos até que, um dia, um de nós teve de partir. Du­rante todo esse tempo, o Mário foi o meu amigo e o meu mestre, o meu irmão e o meu cúm­plice, dia após dia, num pro­cesso que ainda hoje so­bre­vive apesar dos anos de sau­dade en­tre­tanto trans­cor­ridos. Num certo sen­tido, al­guma coisa do Mário so­bre­vive em mim como de­certo em muitos ou­tros porque o Mário der­ra­mava fra­ter­ni­dade e ter­nura em torno de si com uma na­tu­ra­li­dade que quase se diria cau­da­losa. Al­guma coisa do Mário so­bre­vive, pois, em mim, como se ele con­ti­nu­asse a ex­plicar-me a cul­tura, o mundo, a vida, e eu tenho or­gulho disso. Um dia, o Ur­bano Ta­vares Ro­dri­gues es­creveu que o seu irmão Mi­guel era a sua es­trela polar. Bem posso dizer que o Mário Cas­trim foi e con­tinua ser em larga me­dida a minha es­trela polar.

Sei que o que acon­tece co­migo su­cede com muita outra gente, e alegro-me por isso: é a evi­dência de que o Mário so­bre­vive ao si­lêncio que lhe é im­posto por aquilo que um seu amigo fre­quen­te­mente de­sig­nava por «a lei da vida». Porque as ge­ra­ções se su­cedem, já nem todos podem re­cordar com ni­tidez a co­ragem do seu tra­balho jor­na­lís­tico, a efi­cácia ar­ra­sa­dora da sua ironia, a fir­meza do ci­dadão. Como muitos de nós sabem, porque tes­te­mu­nharam o facto, e ou­tros por­ven­tura ig­noram porque che­garam mais tarde, a sua co­luna de crí­tica de te­le­visão foi, ao longo de anos e dia após dia, um lugar de evi­dente re­sis­tência pú­blica ao re­gime que oprimia o país. Há anos, num tempo negro e di­fícil para a França, Louis Aragon disse que «il est con­ta­gieux l’e­xemple du cou­rage». Bem se pode dizer que a crí­tica diária do Mário Cas­trim no Diário de Lisboa era um con­ta­gioso exemplo, tanto e de tal modo que sobre os seus textos a cen­sura dis­pa­rava os traços do seu ul­tra­vi­gi­lante lápis dito azul, tanto e de tal modo que a crí­tica do Mário chegou a estar to­tal­mente su­pri­mida du­rante se­manas. Essa au­sência foi de tal modo es­can­da­losa e sus­citou uma re­acção tão viva por parte do pú­blico leitor que o cha­mado «Canal da Crí­tica» re­gressou como que em om­bros: o ta­lento e a co­ragem de um homem ha­viam sido mais fortes que o po­de­roso apa­relho cen­sório.

O Mário foi-se em­bora há ca­torze anos, des­pediu-se de nós com um poema be­lís­simo que em trans­pa­rência é como que um seu auto-re­trato, mas em ver­dade está co­migo todos os dias e não apenas quando, ao com­pu­tador, me es­forço por em mi­nús­cula parte pros­se­guir a linha de des­mas­ca­ra­mento das im­pos­turas e da ne­ces­si­dade de con­ti­nuar a re­sistir que foi uma das muitas li­ções que dele re­cebi. O Mário está, pois, ao meu lado como de­certo está junto de muito mais gente. Acon­tece com ho­mens como ele. Sirvo-me de uma frase alheia que se adequa ri­go­ro­sa­mente ao Mário: nunca mais ve­remos um homem assim.

(texto es­crito para a ho­me­nagem a Mário Cas­trim pro­mo­vida em 2017 por um grupo de amigos, no Te­atro de São Luiz, em Lisboa)

 


Último poema

Lá­grimas, não. Lá­grimas, não. A sério.

Enfim, não digo que. É na­tural.

Mas pronto. Adeus, prazer em co­nhecer-vos.

Fi­lhos, se­jamos prá­ticos, sa­dios.

 

Nada de flores. Ri­go­ro­sa­mente.

Nem de velas, está bem? Se as acen­derem

Sou homem para me le­vantar e vir

Soprá-las, e cantar os «pa­ra­béns».

 

Não falem baixo; é tarde para se­gredos.

Con­versem, mas de modo que eu também

oiça, e me­lhor a grande noite passe.

 

Peço pouco na hora des­pren­dida:

Fique eu em vós apenas como se

Tudo não fosse mais que um sonho bom.

 

Mário Cas­trim

(Es­crito no Hos­pital dos Ca­pu­chos

Uma se­mana antes do seu fa­le­ci­mento)