Isto é a «América»

Albano Nunes

Quanto às can­dentes ques­tões in­ter­na­ci­o­nais, pra­ti­ca­mente nada se­para Trump de Biden

Sobre o pri­meiro «de­bate» pré-elei­toral entre os can­di­datos dos dois par­tidos que mo­no­po­lizam o poder nos EUA, as opi­niões são quase unâ­nimes: «caó­tico», «gro­tesco», re­cheado de «in­ter­rup­ções, in­sultos e ata­ques pes­soais», uma «ver­gonha e um circo»… Mesmo os mais fe­rozes apo­lo­gistas da «de­mo­cracia ame­ri­cana» foram for­çados a re­co­nhecê-lo, em­bora para ver nele um sim­ples en­torse no «exem­plar» fun­ci­o­na­mento das ins­ti­tui­ções e não o pro­duto de um sis­tema em de­ca­dência e das dis­putas na classe do­mi­nante sobre ca­mi­nhos para deter o de­clínio do poder mun­dial do im­pe­ri­a­lismo norte-ame­ri­cano.

A pro­pó­sito do «de­bate» um ar­tigo de opi­nião, des­gos­toso e te­me­roso pela «menor ca­pa­ci­dade de [os EUA] servir de exemplo», ti­tu­lava Isto não pode ser a Amé­rica (Pú­blico, 1.10.20). A ver­dade porém é que pode e é. Na re­a­li­dade, es­tamos pe­rante a imagem de uma so­ci­e­dade onde o do­mínio sem freio do grande ca­pital ali­menta as mai­ores ini­qui­dades: uma in­sul­tuosa con­cen­tração do ca­pital e da ri­queza; exér­citos de de­sem­pre­gados, po­bres e sem abrigo; mi­lhões e mi­lhões sem qual­quer pro­teção na Saúde, na base do re­corde mun­dial de 209 mil mortos pela pan­demia; ca­deias su­per­lo­tadas com mais de dois mi­lhões de presos e pena de morte ainda em vigor; a in­se­gu­rança e o medo ge­ne­ra­li­zados, ali­men­tando po­de­rosos ne­go­ci­antes de ar­ma­mento; o ra­cismo, o su­pre­ma­cismo branco e o fas­cismo or­ga­ni­zados, to­le­rados, ac­tu­ando à luz do dia; um avas­sa­lador do­mínio dos média e das grandes em­presas de co­mu­ni­cação di­gital, que se­meiam a con­fusão, ba­na­lizam a men­tira, ma­ni­pulam des­ca­ra­da­mente a opi­nião pú­blica...

Mais do que aquele gro­tesco es­pec­tá­culo, é a pró­pria re­a­li­dade do ca­pi­ta­lismo norte-ame­ri­cano que não pode «servir de exemplo» e, muito menos, le­gi­timar a ar­ro­gância dos EUA para dar li­ções ao mundo. No que res­peita a Por­tugal, é in­qui­e­tante que as des­ca­radas in­ge­rên­cias dos EUA nos as­suntos in­ternos do nosso país não só não te­nham sido fir­me­mente re­pu­di­adas pelo Go­verno e Pre­si­dente da Re­pú­blica, como te­nham sido se­guidas de re­a­fir­ma­ções de «fi­de­li­dade» a ali­anças que com­pro­metem a so­be­rania de Por­tugal, pas­sando ra­pi­da­mente uma es­ponja sobre as in­sul­tu­osas de­cla­ra­ções do em­bai­xador norte-ame­ri­cano e mesmo dis­po­ni­bi­li­zando a Base das Lages aos EUA, como fez o Mi­nistro dos Ne­gó­cios Es­tran­geiros Santos Silva na sua en­tre­vista ao Pú­blico de 1.10.20.

Mas o mais sig­ni­fi­ca­tivo no «de­bate», mais que no seu ca­rácter gro­tesco, con­sistiu na au­sência de um real con­fronto po­lí­tico que per­mi­tisse iden­ti­ficar di­fe­renças de fundo entre as duas can­di­da­turas. Claro que seria er­rado su­bes­timar epi­só­dios como a re­cusa de Trump em con­denar os fas­cistas su­pre­ma­cistas brancos ou a ameaça de não re­co­nhecer os re­sul­tados elei­to­rais. São epi­só­dios que con­firmam o real pe­rigo de fas­cismo apon­tado pelo Par­tido Co­mu­nista dos EUA. Mas quanto às can­dentes ques­tões da vida in­ter­na­ci­onal, pra­ti­ca­mente nada a não ser a con­cor­dância quanto à luta pela he­ge­monia mun­dial dos EUA.

Foi assim o «de­bate» a que muitos, pro­cu­rando se­mear ilu­sões que só podem servir para tentar des­mo­bi­lizar a luta anti-im­pe­ri­a­lista, cha­maram o «com­bate que pode mudar o mundo».




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