Eles

Correia da Fonseca

O passado dia 20 foi o Dia Mundial dos Pobres e nele ocorreram diversas iniciativas que a efeméride justificava, desde uma mensagem do Papa Francisco até referências diversas e de vária intensidade em canais de televisão. A TV portuguesa não fugiu à regra, no que obviamente andou muito bem, e não só em dado momento nos falou dos pobres como por mais de uma vez utilizou uma qualificação mais dura e nos lembrou os miseráveis, isto é, os que desceram um pouco mais no vocabulário qualificador e justificam ser referidos com uma palavra de mais forte impacto. É praticamente certo que daqui a um ano eles, os pobres e os miseráveis, voltarão a ser lembrados na televisão portuguesa, porventura mais nuns canais que noutros, e até que entretanto serão referidos aqui e além no âmbito de um compadecimento geral que é bonito que exista mesmo se inconsequente. No quadro dessa evocação, a TV ouviu Eugénio Fonseca, presidente da Caritas Portuguesa, bem conhecida instituição de solidariedade, e lá ouvimos mais referências aos pobres e/ou miseráveis cuja presença se alarga com maior ou menor densidade por todo o território nacional.

Já tarda

Pelo que se ouviu a Eugénio Fonseca, fomos lembrados de que Portugal é um país onde a pobreza é uma espécie doença endémica que atinge milhões de cidadãos sem que se dê muito por isso, diversamente do que ocorre com a pandemia agora sinistramente na moda. Acontece, porém, qualquer coisa que vale a pena notar por ser instrutiva: ao passo que a televisão nos fala da pandemia a cada hora que passa, no que se refere à pobreza a omissão é praticamente total. Se formos criaturas de muito boa vontade mas de limitado entendimento podemos admitir que esse silêncio decorre do generoso objectivo de não nos incomodar ou de não prejudicar o prazer de vermos mais uma telenovela em paz e sossego. Porém, este legítimo desejo de sossego e paz tem um limite: o de não se transmutar em efectiva cumplicidade com injustiças e infâmias que por aí cavalguem. Há quem, sumariamente mas com alguma espécie de razão, diga que o que não «passa» na televisão não existe; quem sabe se esta penúria, quase ausência, de pobres na TV (excepto quando a reportagem acompanha o Presidente Marcelo em visitas nocturnas aos sem-abrigo) não visa a sua eliminação da consciência das gentes? E, contudo, eles existem, como podemos dizer imitando um poucochinho Galileu. Existem e há para com eles uma enorme e escandalosa dívida cujo pagamento já tarda.