João Ferreira, candidato a Presidente da República

Defender, cumprir e fazer cumprir a Constituição é, mais do que um juramento, um programa

EN­TRE­VISTA O can­di­dato a Pre­si­dente da Re­pú­blica, João Fer­reira, fala ao Avante! ee como um Pre­si­dente com­pro­me­tido com a Cons­ti­tuição que jura de­fender, cum­prir e fazer cum­prir po­deria ter agido neste pe­ríodo tão di­fícil e apela à con­ver­gência na sua can­di­da­tura de todas as lutas dos que as­piram a uma al­ter­na­tiva po­lí­tica. Assim será pos­sível abrir, com «co­ragem e con­fi­ança, um ho­ri­zonte de es­pe­rança na vida de todos nós».

A Cons­ti­tuição con­serva um sen­tido de pro­gresso e jus­tiça so­cial, um va­lioso pro­grama de de­sen­vol­vi­mento


Como ava­lias o con­texto em de­correm as elei­ções para Pre­si­dente da Re­pú­blica?

As elei­ções de­correm numa con­jun­tura que é muito mar­cada pela pan­demia, pelos seus im­pactos, nos planos eco­nó­mico e so­cial e pelos im­pactos do apro­vei­ta­mento que dela faz o grande ca­pital. Há, porém, um con­texto mais de fundo, criado pelos pro­blemas es­tru­tu­rais que o País vem ar­ras­tando há dé­cadas, fruto da po­lí­tica de di­reita: a in­su­fi­ci­ente va­lo­ri­zação do tra­balho e dos tra­ba­lha­dores, com re­flexos nos baixos sa­lá­rios e na ele­vada pre­ca­ri­e­dade; a de­gra­dação dos ser­viços pú­blicos e a des­res­pon­sa­bi­li­zação do Es­tado pelas suas fun­ções so­ciais; a fra­gi­li­zação do apa­relho pro­du­tivo na­ci­onal e a cres­cente de­pen­dência do país; o do­mínio cres­cente dos grupos eco­nó­micos e fi­nan­ceiros, na sua mai­oria es­tran­geiro, sobre a vida na­ci­onal. É este con­texto que de­ter­mina, em grande me­dida, a ex­tensão e pro­fun­di­dade dos im­pactos da pan­demia, a par da in­su­fi­ci­ente res­posta do Go­verno à sua mi­ti­gação.

De que modo os po­deres que a Cons­ti­tuição da Re­pú­blica atribui ao Pre­si­dente da Re­pú­blica po­de­riam ter con­tri­buído para que a si­tu­ação fosse outra?

Se olharmos para os prin­ci­pais pro­blemas es­tru­tu­rais que o país en­frenta, ve­ri­fi­camos que na sua raiz, nas suas causas, está um con­flito entre a acção de su­ces­sivos go­vernos e as­pectos es­sen­ciais do re­gime de­mo­crá­tico plas­mado na Cons­ti­tuição da Re­pú­blica. Uma Cons­ti­tuição que con­sagra um amplo con­junto de di­reitos – po­lí­ticos, eco­nó­micos, so­ciais, cul­tu­rais – e que aponta um ca­minho de de­sen­vol­vi­mento que per­mita as­se­gurar a base ma­te­rial ne­ces­sária à plena efe­ti­vação desses di­reitos. Su­ces­sivos pre­si­dentes da Re­pú­blica, por ação e por omissão, foram cúm­plices no avo­lumar deste con­flito.

O Pre­si­dente da Re­pú­blica, não sendo go­verno, deve ac­tuar no quadro das suas atri­bui­ções, usando os seus po­deres, para as­se­gurar o cum­pri­mento do ju­ra­mento que faz, aquando da sua to­mada de posse: «de­fender, cum­prir e fazer cum­prir a Cons­ti­tuição.»

Além dos im­por­tantes po­deres que lhe per­mitem de­mitir o go­verno e dis­solver a As­sem­bleia da Re­pú­blica, o Pre­si­dente tem o di­reito de se pro­nun­ciar sobre todas as emer­gên­cias para o País, de­cide pro­mulgar ou vetar le­gis­lação, pode re­correr ao Tri­bunal Cons­ti­tu­ci­onal para apre­ci­ação de in­cons­ti­tu­ci­o­na­li­dade de leis. Pode en­viar men­sa­gens à As­sem­bleia da Re­pú­blica. Além de tudo isto, as suas to­madas de po­sição pú­blicas pesam in­dis­cu­ti­vel­mente no curso da vida na­ci­onal.

Estes vastos po­deres podem e devem ser usados para sanar o con­flito que re­feri e para in­flu­en­ciar um rumo de de­sen­vol­vi­mento, jus­tiça e pro­gresso so­cial.

Sempre con­si­de­raste o es­tado de emer­gência des­ne­ces­sário para o com­bate à epi­demia e pe­ri­goso para os di­reitos e li­ber­dades dos tra­ba­lha­dores e do povo. A re­a­li­dade está a con­firmar essas pre­vi­sões?

Assim é. Ne­nhuma das me­didas mais con­se­quentes de com­bate à pan­demia, adop­tadas ou por adoptar, re­quer o «es­tado de emer­gência». Mesmo o con­fi­na­mento, ve­ri­fi­cado aquando da pri­meira vaga, não ne­ces­sitou do «es­tado de emer­gência», uma vez que a po­pu­lação aderiu vo­lun­ta­ri­a­mente às me­didas re­co­men­dadas pelas au­to­ri­dades de saúde, se­manas antes do «es­tado de emer­gência».

Este em nada con­tri­buiu nem con­tribui para se adop­tarem me­didas que tardam, a vá­rios ní­veis: re­forço do SNS, pro­tecção da saúde nos lo­cais de tra­balho, re­forço dos trans­portes pú­blicos e de­mais ser­viços pú­blicos, entre ou­tras. Mas, por outro lado, o «es­tado de emer­gência» veio li­mitar di­reitos e li­ber­dades, do di­reito à greve, logo no pri­meiro «es­tado de emer­gência», ao di­reito de des­lo­cação, por exemplo, e foi uti­li­zado para criar um am­bi­ente que fa­vo­receu a li­mi­tação ou afronta a ou­tros di­reitos, de que é exemplo todo o tipo de abusos e de ar­bi­tra­ri­e­dades que se ve­ri­ficou em muitos lo­cais de tra­balho.

Tens afir­mado em di­versas oca­siões que o ac­tual Chefe de Es­tado fa­lhou no cum­pri­mento do seu ju­ra­mento de «de­fender, cum­prir e fazer cum­prir a Cons­ti­tuição». Podes dar al­guns exem­plos?

Há exem­plos par­ti­cu­lar­mente em­ble­má­ticos. A Cons­ti­tuição de­ter­mina que a or­ga­ni­zação do tra­balho deve per­mitir a con­ci­li­ação da ati­vi­dade pro­fis­si­onal com a vida fa­mi­liar e que os jo­vens têm di­reito a uma pro­tecção es­pe­cial no tra­balho e no acesso ao pri­meiro em­prego. Ora, as al­te­ra­ções à le­gis­lação la­boral, re­la­tivas aos bancos de horas e ao alar­ga­mento do pe­ríodo ex­pe­ri­mental, pro­mul­gadas pelo PR sem fis­ca­li­zação prévia pelo Tri­bunal Cons­ti­tu­ci­onal, são a ne­gação destes pre­ceitos.

Os tra­ba­lha­dores viram as suas vidas de­sor­ga­ni­zadas. Os jo­vens foram sub­me­tidos a uma vul­ne­ra­bi­li­dade es­pe­cial e não à de­vida pro­tecção es­pe­cial. Nos sa­lá­rios, o ac­tual Pre­si­dente optou por se co­locar ao lado das con­fe­de­ra­ções pa­tro­nais, contra a Cons­ti­tuição, co­lo­cando todo o peso das suas in­ter­ven­ções pú­blicas do lado dos blo­queios ao au­mento dos sa­lá­rios. Re­cor­demo-nos da sua afir­mação, há um ano, de que 635 euros é um «valor ra­zoável» para o sa­lário mí­nimo. Um valor que sa­bemos que ar­rasta para a po­breza mi­lhares de tra­ba­lha­dores que o re­cebem...

Há exem­plos de sobra, por­tanto…

Mas há mais. No que toca à saúde, a Cons­ti­tuição dispõe que o di­reito à pro­tecção da saúde é re­a­li­zado através do Ser­viço Na­ci­onal de Saúde, uni­versal e geral, ten­den­ci­al­mente gra­tuito. Ora, os es­forços do ac­tual Pre­si­dente foram sempre no sen­tido de fa­vo­recer o ne­gócio dos grupos eco­nó­micos pri­vados que operam no ne­gócio da do­ença, à custa do sa­cri­fício do SNS. É sin­to­má­tico que nas suas in­ter­ven­ções pú­blicas se re­fira a um «sis­tema na­ci­onal de saúde», que a Cons­ti­tuição não re­co­nhece, e não ao SNS.

Quanto ao di­reito à ha­bi­tação, cons­ti­tu­ci­o­nal­mente con­sa­grado, im­porta não es­quecer que o Pre­si­dente da Re­pú­blica vetou le­gis­lação que per­mitia aos in­qui­linos de um grupo fi­nan­ceiro (o Grupo Fi­de­li­dade) exercer o seu di­reito de pre­fe­rência na compra das res­pe­tivas ha­bi­ta­ções, abrindo o ca­minho para a ali­e­nação do pa­tri­mónio imo­bi­liário deste Grupo a fundos es­pe­cu­la­tivos. Pela sua im­por­tância, re­fi­ramos ainda a forma como não as­sumiu os de­síg­nios da so­be­rania e in­de­pen­dência na­ci­o­nais, que a Cons­ti­tuição cla­ra­mente as­sume, e não de­fendeu os va­lores da paz. O que ficou claro na pos­tura de sub­missão pe­rante a UE e os EUA e vá­rios dos seus res­pon­sá­veis.

A Cons­ti­tuição da Re­pú­blica Por­tu­guesa é, de certo modo, o pro­grama po­lí­tico da can­di­da­tura que as­sumes. De­pois de tantas re­vi­sões, ela ainda com­porta a res­posta que se impõe aos prin­ci­pais pro­blemas do País?

Apesar das vá­rias re­vi­sões, que a am­pu­taram e pon­tu­al­mente a des­fi­gu­raram, a Cons­ti­tuição con­serva um sen­tido geral de pro­gresso e de jus­tiça so­cial, um va­lioso pro­grama de de­sen­vol­vi­mento, que con­si­dera in­se­pa­rá­veis as ver­tentes po­lí­tica, eco­nó­mica, so­cial e cul­tural da de­mo­cracia, ali­adas à so­be­rania e in­de­pen­dência na­ci­o­nais. Um pro­grama que ins­creve os di­reitos dos tra­ba­lha­dores como in­trín­secos à de­mo­cracia; que re­co­nhece às mu­lheres o di­reito à igual­dade no tra­balho, na fa­mília e na so­ci­e­dade; que con­sagra im­por­tantes di­reitos das cri­anças e dos jo­vens, dos re­for­mados, dos ci­da­dãos com de­fi­ci­ência; que proíbe as dis­cri­mi­na­ções, as ex­clu­sões e com­bate às in­jus­tiças so­ciais; que pre­co­niza a su­bor­di­nação do poder eco­nó­mico ao poder po­lí­tico.

Desde que apre­sen­taste a tua can­di­da­tura, ainda não pa­raste de per­correr o País. Dos con­tactos que efec­tu­aste, qual tem sido a re­cep­ti­vi­dade que tens en­con­trado?

Há uma boa re­cep­ti­vi­dade em re­lação aos va­lores desta can­di­da­tura, que temos pro­cu­rado afirmar, o que tem ex­pressão na re­colha de apoios, até de qua­drantes di­versos. Mas é evi­dente que as cir­cuns­tân­cias atuais nos im­põem li­mi­ta­ções.

As pre­senças nas ses­sões pú­blicas, por exemplo, estão li­mi­tadas por ra­zões sa­ni­tá­rias. Im­porta su­perar estes cons­tran­gi­mentos, através de um grande en­vol­vi­mento e em­pe­nha­mento co­lec­tivos, mul­ti­pli­cando as ini­ci­a­tivas, apro­vei­tando o po­ten­cial das redes so­ciais. Pelos seus va­lores, pelo seu pro­jeto, pelos seus ob­jec­tivos, esta can­di­da­tura nunca seria uma can­di­da­tura de um homem só.

É pre­ciso dar ex­pressão a esta re­a­li­dade também na cam­panha, alar­gando con­tactos, va­lo­ri­zando a ini­ci­a­tiva in­di­vi­dual e co­lec­tiva dos mi­li­tantes e or­ga­ni­za­ções do Par­tido, dos ac­ti­vistas da can­di­da­tura.

Apesar desta in­tensa acção no ter­reno, do ponto de vista me­diá­tico, é quase como se a can­di­da­tura não exis­tisse… Como ex­plicas isto?

É um sin­toma mais da co­mu­ni­cação so­cial que temos e da pre­dis­po­sição e ob­jec­tivos do poder eco­nó­mico que a con­trola. Não sendo algo pro­pri­a­mente novo, não deixa de sur­pre­ender pelo férreo cerco de si­lêncio im­posto à nossa can­di­da­tura e, po­demos dizer, em geral, às pró­prias elei­ções e ao que nelas está em causa. Per­cebe-se que há quem de­seje que esta eleição passe ao lado dos por­tu­gueses.

Mas este si­len­ci­a­mento, que há que de­nun­ciar, não fará es­mo­recer a nossa de­ter­mi­nação em levar mais longe a afir­mação desta can­di­da­tura.

Para além do ac­tual Pre­si­dente da Re­pú­blica, temos ou­tros can­di­datos, dos mais va­ri­ados sec­tores po­lí­ticos. O que faz a can­di­da­tura de João Fer­reira ser «ne­ces­sária, in­dis­pen­sável e in­subs­ti­tuível» e os seus va­lores «não de­le­gá­veis» em ne­nhuma outra?

Esta can­di­da­tura, mais do que ne­ces­sária, é in­dis­pen­sável e in­subs­ti­tuível porque se bate e ba­terá, a partir do exer­cício dos po­deres do Pre­si­dente da Re­pú­blica, como ne­nhuma outra, pela va­lo­ri­zação do tra­balho e dos tra­ba­lha­dores, pelos seus di­reitos, pelo au­mento dos sa­lá­rios, pelo com­bate à pre­ca­ri­e­dade; pela con­cre­ti­zação dos di­reitos con­sa­grados na Cons­ti­tuição – o di­reito à saúde, à ha­bi­tação, à edu­cação, à cul­tura, a um am­bi­ente eco­lo­gi­ca­mente equi­li­brado; pelos di­reitos da ju­ven­tude e dos mais idosos, dos ci­da­dãos com de­fi­ci­ência; pela igual­dade, contra as dis­cri­mi­na­ções e vi­o­lên­cias que pesam sobre as mu­lheres, pelo di­reito à igual­dade no tra­balho, na fa­mília e na so­ci­e­dade; pela er­ra­di­cação do ra­cismo e da xe­no­fobia.

Uma can­di­da­tura que aponta um ca­minho de de­sen­vol­vi­mento do País, ga­rante da efec­ti­vação dos di­reitos e do bem-estar so­cial, com o re­forço e am­pli­ação da ca­pa­ci­dade pro­du­tiva na­ci­onal e com a pre­va­lência dos in­te­resses na­ci­o­nais sobre as im­po­si­ções ex­ternas.

Ca­minho esse que está em causa…

Sim. E estes são ele­mentos in­dis­pen­sá­veis para res­ponder à si­tu­ação di­fícil, com­plexa e exi­gente em que o País se en­contra. Uma si­tu­ação que com­porta a pos­si­bi­li­dade de de­sen­vol­vi­mentos pe­ri­gosos no plano do con­fronto com o re­gime de­mo­crá­tico con­sa­grado na Cons­ti­tuição.

Como afir­mámos aquando da apre­sen­tação desta can­di­da­tura, pe­rante as di­fi­cul­dades certas, im­porta saber com quem po­demos contar. E esta é a can­di­da­tura ins­pi­rada nos que já mos­traram que não se es­condem, que não de­sertam, que não se rendem, nem ficam à es­pera quando os tra­ba­lha­dores e o povo são ata­cados nos seus di­reitos; nos que lutam, até às úl­timas con­sequên­cias, pela li­ber­dade e pela de­mo­cracia.

Como se com­pa­ti­bi­liza a ideia, que tens re­pe­ti­da­mente afir­mado, de que a can­di­da­tura é «um es­paço de luta comum» sendo, ao mesmo tempo, um órgão uni­pes­soal?

A eleição de um Pre­si­dente da Re­pú­blica com­pro­me­tido com os in­te­resses do povo é parte da mu­dança na vida do País, a que tantos as­piram. Nas con­di­ções ac­tuais, para que se con­cre­tize esta eleição, terão de con­vergir nesta can­di­da­tura as lutas de todos os que de­sejam essa mu­dança. Lutas que terão de ser le­vadas até ao voto: dos tra­ba­lha­dores; das po­pu­la­ções; das mu­lheres; dos jo­vens; dos re­for­mados e pen­si­o­nistas; dos micro e pe­quenos em­pre­sá­rios; das ví­timas da de­si­gual­dade, da ex­clusão, da dis­cri­mi­nação, do ra­cismo e da xe­no­fobia.

É o sen­tido comum destas lutas, a sua con­ver­gência, que nos per­mi­tirá abrir, com co­ragem e con­fi­ança, um ho­ri­zonte de es­pe­rança na vida de todos nós.