Monstruosidades do Tempo do Infortúnio, de José Viale Moutinho

Domingos Lobo

A vasta e di­ver­si­fi­cada obra de José Viale Mou­tinho es­tende-se do ro­mance ao conto, do en­saio, à po­esia e ao te­atro

Já tive opor­tu­ni­dade, noutro es­paço e noutro jornal, de me re­ferir a al­guns dos contos que cons­ti­tuem este Mons­tru­o­si­dades do Tempo do In­for­túnio, de José Viale Mou­tinho, que nesta se­gunda edição se apre­senta ape­tre­chado com um in­te­res­sante pre­fácio de Flávio Garcia e ao qual o autor acres­centou mais uns quantos nacos de pre­ciosa prosa.

A pre­sente edição des­te­livro foi dis­tin­guida, em 2019, com o Grande Prémio do Conto Ca­milo Cas­telo Branco, da APE.

José Viale Mou­tinho é um es­critor po­lié­drico e fe­cundo, com vasta e di­ver­si­fi­cada obra que se es­tende do ro­mance ao conto – sendo o conto o es­paço fic­ci­onal em que o seu vir­tu­o­sismo ima­gé­tico, a crueza da lin­guagem fer­men­tada numa ironia de boa e abran­gente li­nhagem (entre Eça e Ca­milo), en­contra mais ade­quada res­pi­ração –, pas­sando pelo en­saio his­tó­rico e bi­o­grá­fico, a gas­tro­nomia, a po­esia e o te­atro.

Autor in­quieto e atento às grandes con­vul­sões his­tó­ricas do seu tempo; so­ci­al­mente em­pe­nhado, com uma es­crita que ex­pressa de modo ori­ginal as pul­sões ho­di­ernas, trans­por­tadas com subtil sa­geza para a sua prosa fic­ci­onal, mor­mente para estes seus contos onde o real con­vive com um non­sense exu­be­rante e ines­pe­rado, numa mescla de sur­re­a­li­zantes ma­tizes dis­cur­sivos pelos quais a sua ima­gi­nação se es­praia, nos textos mais con­se­guidos, em ágeis res­so­nân­cias do fan­tás­tico e do oní­rico.

Neste li­vro­Viale Mou­tinho atinge um dos mais altos pa­ta­mares da sua pro­sódia, em textos que se lêem de um fô­lego tal o vigor da lin­guagem, a dextra es­tru­tura nar­ra­tiva, esse fluxo ex­po­si­tivo de um fértil ima­gi­nário que nos en­volve e seduz.

Contos como A Traição da Mu­lher do Bom­beiro, O Cas­telo do Mau Vi­zinho, O in­cêndio no velho al­far­ra­bista, A Al­deia das Po­bres Co­bras e Ne­gó­cios com o De­mónio, re­metem-nos para uma me­mória es­parsa dos ima­gi­ná­rios que se atrela aos contos má­gicos da in­fância, aos mitos do bes­tiário an­ces­tral, às crenças em De­mó­nios, Bruxas e Du­endes, até ao uni­verso kaf­kiano nos am­bi­entes, na ca­rac­te­ri­zação das per­so­na­gens, no sór­dido, nas fe­ridas que ainda san­gram da guerra ci­vilde Es­panha, nas tra­gé­dias do con­tra­bando, num D. Qui­xote rein­ven­tado, no ab­surdo con­cep­tual que es­tru­tura e in­vade esta es­crita e a fazem pes­so­a­lís­sima e rara.

Vinte e nove textos cons­ti­tuem este Mons­tru­o­si­dades do Tempo do In­for­túnio, pe­quenas pé­rolas que acres­centam mais um tí­tulo ao sin­gular pro­jecto fic­ci­onal de um autor cujo labor li­te­rário atra­vessa as zonas fron­tei­riças do Norte e en­contra eco me­re­cido nessa ex­tensão da língua que a Ga­liza, or­gu­lho­sa­mente e de modo iden­ti­tário, cul­tiva. Es­paço onde a obra de José Viale Mou­tinho re­colhe o me­re­cido re­co­nhe­ci­mento crí­tico que entre nós, atados a atá­vicas dis­trac­ções lhe vai, in­com­pre­en­si­vel­mente, es­ca­pando.

Do conto A Tra­gédia dos Hi­pó­critas, e em jeito de abrir ape­tite à lei­tura de Mons­tru­o­si­dades, res­pigo este naco de bom e in­te­li­gente humor: Se­nhor guarda mu­ni­cipal, re­cla­mava um es­pec­tador, o que estão aqui a fazer estes cro­co­dilos? O guarda gordo, que pa­li­tava os dentes, disse sem fe­char a boca:

- Choram, se­nhor po­pular, pois não lhes vê as lá­grimas?

Este ano que agora finda, e do qual iremos guardar uma me­mória feita de an­gústia e re­sis­tência, é-me grato ainda re­gistar a pu­bli­cação do livro Os Ci­mentos da Noite, em que José Viale Mou­tinho junta a sua pro­dução poé­tica pu­bli­cada entre 1975 e 2018. Desse vo­lume, ao qual vol­tarei com mais vagar e opor­tu­ni­dade, deixo-vos com um poema A Cha­mada, do livro Em Causa Pró­pria, que trans­porta no seu dis­curso as in­qui­e­ta­ções que atra­vessam este nosso es­tranho tempo: Meu amor (volto-me então, de re­pente),/​al­guém disse meu amor; afinal, as asas/​en­redam-se, a ca­beça move-se, as mãos/​aca­ri­ciam todas as su­per­fí­cies dos medos;// eles já estão na rua, as te­le­fo­nias abrem/​as suas feias bocas, gastam todas as pi­lhas/​e as es­pin­gardas mul­ti­plicam-se, os ru­mores/​crescem, das sór­didas gretas do chão;// dessas covas surgem todos, uns de­mó­nios/​que se abrigam no co­ração de al­guns ho­mens.

Mons­tru­o­si­dades do Tempo do In­for­túnio, de José Viale Mou­tinho – Edi­ções Afron­ta­mento/​2020



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