Nos 100 anos de Jaime Serra

Coragem, firmeza e ternura de uma vida de luta pela liberdade

EVOCAÇÃO Jaime Serra fez 100 anos no pas­sado dia 22. Des­ta­cado di­ri­gente co­mu­nista e re­sis­tente an­ti­fas­cista, foi preso, tor­tu­rado e a tudo re­sistiu, evadiu-se três vezes dos cár­ceres fas­cistas, di­rigiu a Acção Re­vo­lu­ci­o­nária Ar­mada (ARA), foi de­pu­tado. O PCP ho­me­na­geia-o na pró­xima se­gunda-feira, 1 de Fe­ve­reiro.

Jaime Serra fugiu por três vezes das pri­sões fas­cistas

Uma vida como a de Jaime Serra não cabe em pa­la­vras. Uma de­di­cação tão in­tensa a um pro­jecto po­lí­tico re­vo­lu­ci­o­nário, um apego tão pro­fundo à li­ber­dade, um com­pro­misso tão forte com o seu povo, uma co­ragem in­fi­nita – e tantas vezes posta à prova – sim­ples­mente não se conta. Pelo menos não de um modo que faça juz ao que se pre­tende re­latar.

Ar­ris­quemos, porque é justo e porque é útil (ainda mais nestes tempos em que vi­vemos), traçar um es­boço desta vida ex­tra­or­di­nária ini­ciada em Lisboa a 22 de Ja­neiro de 1921. Aliás, no dia em que cum­priu um sé­culo de vida, re­cebeu com uma de­di­ca­tória do Se­cre­ta­riado do Par­tido um exem­plar do livro 100 Anos de Luta ao Ser­viço do Povo e da Pá­tria, pela De­mo­cracia e o So­ci­a­lismo – pá­ginas de uma luta ab­ne­gada e he­róica que ele pró­prio ajudou a es­crever.

Jaime Serra foi da­queles ho­mensque nunca foram me­ninos: ope­rário desde os 12 anos, já antes aju­dara os pais na venda am­bu­lante em que estes se ocu­param nos longos pe­ríodos de de­sem­prego do pai. O am­bi­ente pro­gres­sista em que cresceu «levou-o» à im­prensa ope­rária e à li­te­ra­tura: aos 12 anos lera já O Ger­minal e O Tra­balho, de Zola, pu­bli­cados jun­ta­mente com A Ba­talha.

É com esta idade que vai tra­ba­lhar para o Bar­reiro, na cons­trução das ofi­cinas da CP: «Jun­ta­mente com ou­tros tra­ba­lha­dores des­lo­cados, eu dormia num bar­racão do es­ta­leiro. No pri­meiro In­verno que ali passei, e que foi muito ri­go­roso, dormia dentro de uma ba­nheira de pedra com um pouco de palha a servir de col­chão. Só mais tarde tive di­reito a uma ta­rimba», conta, no seu livro au­to­bi­o­grá­fico Eles Têm o Di­reito de Saber (Edi­ções Avante!, 1997). Du­rante a em­prei­tada no Bar­reiro, em que só ia a casa aos fins-de-se­mana, co­meçou a fre­quentar a co­lec­ti­vi­dade Os Pe­ni­cheiros, no­me­a­da­mente a bi­bli­o­teca e os cursos de es­pe­ranto.

Abraçar a luta

A greve e as ma­ni­fes­ta­ções que ir­rom­peram nas ofi­cinas dos ca­mi­nhos-de-ferro, na sequência do 18 de Ja­neiro de 1934, cons­ti­tuíram o «bap­tismo» po­lí­tico de Jaime Serra. Por esta al­tura, co­me­çara a ler o Avante! e a apro­ximar-se do Par­tido: em 1936, já em Lisboa, juntou-se à Fe­de­ração das Ju­ven­tudes Co­mu­nistas Por­tu­guesas e, no ano se­guinte, ao PCP. O 16.º ani­ver­sário passou-o na prisão, após ter sido cap­tu­rado com um exem­plar do Avante! (do qual era dis­tri­buidor).

Uma vez em li­ber­dade, em­pregou-se como ser­ra­lheiro civil, pri­meiro, e como tra­çador naval, de­pois, ao mesmo tempo que fre­quen­tava o en­sino noc­turno. Em Agosto de 1940 en­trou para o Ar­senal da Ma­rinha e as­sumiu res­pon­sa­bi­li­dades na cé­lula do Par­tido, que em breve al­cançou «cerca de 50 mi­li­tantes e chegou a dis­tri­buir 100 exem­plares do Avante!», re­corda, na obra ci­tada. Entre 1942 e 1943, Jaime Serra cum­priu o ser­viço mi­litar e em No­vembro desse úl­timo ano casou-se com Laura dos Santos Cor­reia, que seria (como con­tinua a ser) a sua com­pa­nheira de toda a vida.

Desde 1945 até 1947, in­te­grou o or­ga­nismo do PCP das Cons­tru­ções Na­vais de Lisboa, re­pre­sen­tando a cé­lula do Ar­senal da Ma­rinha. Em Abril de 1947, Jaime Serra par­ti­cipa ac­ti­va­mente na greve da cons­trução naval, que en­volveu mi­lhares de ope­rá­rios e re­sultou em im­por­tantes vi­tó­rias. Para evitar a prisão, por pro­posta do Par­tido, Jaime Serra passou à clan­des­ti­ni­dade em Se­tembro de 1947, com a com­pa­nheira e a pri­meira filha, Maria Ar­manda, de dois anos. Na clan­des­ti­ni­dade nas­cerão os ou­tros três fi­lhos: Olga Maria, Ana Maria e José Ma­nuel.

A dura clan­des­ti­ni­dade

A vida clan­des­tina, que Jaime Serra lembra como «cheia de ca­rên­cias e res­tri­ções ma­te­riais», ini­ciou-se em Lisboa, cujo Co­mité Local in­te­grou. Nos dois anos se­guintes, as­sumiu a res­pon­sa­bi­li­dade por sec­tores como a in­dús­tria naval, os ca­mi­nhos de ferro, ban­cá­rios, se­guros e as zonas oci­dental e ori­ental da ci­dade. Em Março de 1949, na sequência de meses de uma in­tensa ac­ti­vi­dade em torno da can­di­da­tura pre­si­den­cial de Norton de Matos, é no­va­mente preso. Pela mesma al­tura, a PIDE cap­tura no Luso os mem­bros do Se­cre­ta­riado Álvaro Cu­nhal e Mi­litão Ri­beiro.

Su­jeito a es­pan­ca­mentos e a oito dias e noites de «es­tátua», Jaime Serra não prestou quais­quer de­cla­ra­ções, de­fen­dendo o seu Par­tido. De­pois de seis meses in­co­mu­ni­cável no Al­jube, foi trans­fe­rido para Ca­xias e daí para Pe­niche, onde chegou em Ja­neiro de 1950. Aí, par­ti­cipou na or­ga­ni­zação pri­si­onal e em muitas lutas pela me­lhoria das con­di­ções – da ali­men­tação ao tempo de re­creio, da hi­giene a col­chões novos, da uti­li­zação da bi­bli­o­teca à pos­si­bi­li­dade de es­tudos co­lec­tivos –, mas não se de­morou: em No­vembro desse mesmo ano, evade-se jun­ta­mente com Fran­cisco Mi­guel, que aca­baria por ser no­va­mente cap­tu­rado, tor­tu­rado e uma vez mais en­viado para o Tar­rafal.

Quanto a Jaime Serra, as­sumiu ta­refas na Margem Sul do Tejo, nas Beiras e uma vez mais em Lisboa. Em 1952, en­trou para o Co­mité Cen­tral e mais tarde para a Co­missão Po­lí­tica. Em De­zembro de 1954, foi no­va­mente preso e en­viado para o Al­jube, de onde tentou es­capar, mas sem êxito. Mais su­cesso teria em Ca­xias, de onde se evadiu em Março de 1956.

De re­gresso à li­ber­dade, e à luta clan­des­tina do PCP, Jaime Serra par­ti­cipou na or­ga­ni­zação do V Con­gresso, re­a­li­zado no Es­toril em Se­tembro de 1957, onde in­ter­veio sobre o pro­blema co­lo­nial. É no seu re­la­tório que se de­fende o «re­co­nhe­ci­mento in­con­di­ci­onal do di­reito dos povos das co­ló­nias por­tu­guesas de África à ime­diata e com­pleta in­de­pen­dência» e se en­tende es­tarem cri­adas as con­di­ções para a con­quista da in­de­pen­dência por esses povos. Oito anos de­pois, no VI Con­gresso, este passa a ser um dos ob­jec­tivos fun­da­men­tais da Re­vo­lução De­mo­crá­tica e Na­ci­onal.

Antes de voltar a ser preso, em 1958, Jaime Serra vi­ajou para a União So­vié­tica in­se­rido numa de­le­gação (da qual fa­ziam parte também An­tónio Dias Lou­renço e Ale­xandre Cas­ta­nheira), que par­ti­cipou nas co­me­mo­ra­ções do 40.º ani­ver­sário da Re­vo­lução de Ou­tubro e numa con­fe­rência in­ter­na­ci­onal de Par­tidos Co­mu­nistas e Ope­rá­rios, e que se­guiu de­pois para a China.

A grande fuga, a ARA e a Re­vo­lução

Jaime Serra foi preso pela úl­tima vez em De­zembro de 1958 no Porto, para onde rumou com o ob­jec­tivo de alertar ou­tros ca­ma­radas para a pos­si­bi­li­dade de serem presos. Após uma pas­sagem pelo Al­jube, onde es­teve sempre in­co­mu­ni­cável, foi trans­fe­rido para a For­ta­leza de Pe­niche, que es­tava muito di­fe­rente da que co­nhe­cera uma dé­cada antes: os novos edi­fí­cios e a se­gu­rança re­for­çada tor­navam-na pra­ti­ca­mente in­vul­ne­rável. Ou assim pen­sava a PIDE...

Mais ainda do que nas fugas an­te­ri­ores, a fuga de Pe­niche de Ja­neiro de 1960, que de­volveu à li­ber­dade e à luta an­ti­fas­cista 10 des­ta­cados mi­li­tantes do PCP, exigiu co­ragem e au­dácia, mas também uma longa e cui­dada pre­pa­ração. Jaime Serra, com Álvaro Cu­nhal e Jo­a­quim Gomes, es­teve no grupo res­trito que a pla­neou e pre­parou no in­te­rior da prisão.

Antes de se mudar para o Norte, Jaime Serra as­sumiu par­ti­cu­lares res­pon­sa­bi­li­dades na ope­ração que per­mitiu àquele que viria a ser o pri­meiro pre­si­dente de An­gola, Agos­tinho Neto, a sair de Por­tugal e a juntar-se à luta pa­trió­tica do seu povo pela in­de­pen­dência, à frente do Mo­vi­mento Po­pular de Li­ber­tação de An­gola/​MPLA. Tratou-se de uma missão ar­ris­cada e mar­cada por di­versos so­bres­saltos. Mais uma vez, a co­ragem e a au­dácia de Jaime Serra foram de­ter­mi­nantes para o seu êxito.

Em Maio de 1970, por de­cisão do Co­mité Cen­tral, re­caiu sobre Jaime Serra a res­pon­sa­bi­li­dade de montar e co­mandar a Acção Re­vo­lu­ci­o­nária Ar­mada (ARA), para apoiar a luta an­ti­fas­cista do povo por­tu­guês, em par­ti­cular através de ac­ções contra o apa­relho co­lo­nial fas­cista: a pri­meira acção deu-se em Ou­tubro de 1970, com a co­lo­cação de uma carga ex­plo­siva no navio Cu­nene, que se pre­pa­rava para rumar a África car­re­gado de ma­te­rial mi­litar para a guerra co­lo­nial. Se­guiram-se a inu­ti­li­zação de ae­ro­naves na Base de Tancos, a des­truição do sis­tema de co­mu­ni­ca­ções aquando da reu­nião da NATO em Lisboa e a de­mo­lição em si­mul­tâneo de 20 torres me­tá­licas das li­nhas de alta tensão. Em Maio de 1973, a ARA sus­pendeu as suas ac­ções «com vista a fa­ci­litar o má­ximo apro­vei­ta­mento da luta po­pular an­ti­fas­cista».

O 25 de Abril es­tava pró­ximo, mas antes Jaime Serra ainda re­pre­sentou o PCP numa vi­sita ao Vi­et­name li­ber­tado.

Cons­trutor da de­mo­cracia

A 30 de Abril de 1974, Jaime Serra acom­pa­nhou o recém-che­gado Álvaro Cu­nhal na reu­nião com a Junta de Sal­vação Na­ci­onal, pre­si­dida pelo Ge­neral Spí­nola. Era, então, membro do Co­mité Cen­tral há 22 anos. Logo nos pri­meiros dias de Maio, re­pre­sentou o PCP nos con­tactos com a Junta e o Mo­vi­mento das Forças Ar­madas.

Jaime Serra in­te­grou o nú­cleo di­ri­gente do PCP nos exal­tantes anos da Re­vo­lução, nos duros com­bates contra os golpes-re­vo­lu­ci­o­ná­rios e nas ba­ta­lhas po­lí­ticas para travar a contra-re­vo­lução «ins­ti­tu­ci­o­na­li­zada». In­te­grou a Co­missão Po­lí­tica entre 1974 e 1988, pas­sando nessa data, e até 1996, a in­cor­porar a Co­missão Cen­tral de Con­trolo e Qua­dros e, pos­te­ri­or­mente, a Co­missão Cen­tral de Con­trolo. Teve à sua res­pon­sa­bi­li­dade as di­rec­ções das or­ga­ni­za­ções re­gi­o­nais de Se­túbal e das Beiras, entre muitas ou­tras ta­refas. Foi de­pu­tado à As­sem­bleia Cons­ti­tuinte e à As­sem­bleia da Re­pú­blica, até 1985.

A li­ber­dade per­mitiu fi­nal­mente ao casal Serra reunir-se com os fi­lhos, para quem Jaime es­creveu no final dos anos 90 o livro Eles têm o Di­reito de Saber, pre­ci­sa­mentepara lhes ex­plicar, e aos netos, «as mo­ti­va­ções que de­ter­mi­naram e con­di­ci­o­naram as suas vidas e o seu fu­turo» – e, acres­cen­tamos, o des­tino do País, que teria sido outro sem a ab­ne­gada en­trega re­vo­lu­ci­o­nária de ho­mens e mu­lheres como Jaime e Laura Serra.