Águas Turvas

Demétrio Alves

A tra­dição ener­gé­tica pro­ve­ni­ente da era so­crá­tica ainda é o que era

Em 2007, du­rante a vi­gência de um go­verno li­de­rado por José Só­crates, com Ma­nuel Pinho na tu­tela da energia, foi apro­vado o De­creto-Lei 226-A/​2007, de 31 de Maio, e to­madas di­versas ou­tras re­so­lu­ções que cul­mi­naram na ex­tensão das con­ces­sões re­la­tivas a vinte e sete (27) apro­vei­ta­mentos hi­dro­e­léc­tricos.

Nesse con­texto, a EDP, que as re­cebeu, pagou ao Es­tado por­tu­guês 759 mi­lhões de euros pelas 27 con­ces­sões hí­dricas. Uma sig­ni­fi­ca­tiva parte desse di­nheiro foi, con­tudo, de­vol­vido ao Sis­tema Eléc­trico, não be­ne­fi­ci­ando o Or­ça­mento de Es­tado. Apesar disso, foi dito pelo go­verno que era coisa boa para o país.

O mon­tante, de­ter­mi­nado de forma obs­cura e no âm­bito de um pro­cesso à margem das re­gras de con­curso pú­blico, foi alvo de aná­lises, con­tes­ta­ções, de­nún­cias e pro­testos. Ficou de­mons­trada a forma si­nuosa como Ma­nuel Pinho e Só­crates atri­buíram os re­fe­ridos em­pre­en­di­mentos à EDP, alar­gando em 25 anos o prazo médio da ex­plo­ração, que, para 14 das cen­trais, passou a ser até 2052!

Estas de­ci­sões po­lí­ticas e ou­tras que se prendem com rendas ex­ces­sivas fa­cul­tadas à EDP, de­ter­mi­naram a aber­tura de pro­cessos crime que, já com acu­sa­ções for­mu­ladas, ainda de­correm.

A ca­pa­ci­dade ins­ta­lada nas 27 cen­trais eléc­tricas, 4 099 MW, cor­res­pondia a 27 % da po­tência eléc­trica total em Por­tugal. Uma fa­bu­losa fonte re­no­vável de lu­cros, que, para a EDP, ficou pela pe­chincha de 28 mi­lhões € por bar­ragem.

No pa­cote con­ces­si­o­nado en­con­travam-se os apro­vei­ta­mentos de Mi­randa do Douro, Bem­posta e Pi­cote, que viram o prazo de con­cessão ser es­ten­dido até 2042.

De­pois, du­rante 2020, veio a pú­blico, em­bora sob denso ne­vo­eiro ins­ti­tu­ci­onal, um outro ne­gócio que en­volve a EDP e o Go­verno, neste caso o mi­nistro do Am­bi­ente e Tran­sição Cli­má­tica, de um lado, e Mexia, no outro.

Trata-se da “trans­missão” das cen­trais hi­dro­e­léc­tricas de Mi­randa, Bem­posta, Pi­cote, Baixo Sabor (duas bar­ra­gens) e Foz-Tua, à fran­cesa Engie, por um valor da tran­sacção de 2 210 mi­lhões de euros. Em média, por cada uma, en­caixou a EDP 442 mi­lhões de euros!

Esta ope­ração, só foi pos­sível com prévio co­nhe­ci­mento e total anuência go­ver­na­mental, coisa no­tória, não obs­tante a falta de co­ragem do mi­nistro em as­sumi-lo.

A EDP viu va­lo­ri­zado cada um dos cen­tros pro­du­tores em 1400 %. Quase 60% de mais-va­lias ao ano! Fora os ren­di­mentos ob­tidos em cada um dos mais de vinte anos.

A ener­gé­tica, foi, em acrés­cimo, isen­tada de Im­posto de Selo, o que lhe rendeu mais 110 mi­lhões de euros, já não fa­lando dos im­postos ter­ri­to­riais (IMI, IMT) que também foram afas­tados porque, ex­plicou, sempre subtil, João Pedro Matos, se trata de um “ne­gócio so­ci­e­tário”! Enfim, só estas isen­ções darão para tor­resmos e tre­moços que os es­cri­tó­rios de ad­vo­gados man­ducam entre reu­niões.

Para além do im­pudor com que se vêm tra­tando em Por­tugal os di­versos dos­siers da energia, a EDP, campeã da sus­ten­ta­bi­li­dade verde, con­segue, à custa de Por­tugal e dos por­tu­gueses, po­ten­ciar a sua in­ter­venção nos mer­cados in­ter­na­ci­o­nais, ali­vi­ando a sua dí­vida.

Nem o facto destes apro­vei­ta­mentos se si­tu­arem numa bacia hi­dro­grá­fica com valor in­ter­na­ci­onal es­tra­té­gico, tanto de água doce como ar­ma­ze­nagem ener­gé­tica por bom­bagem, im­pediu que se con­so­li­dasse a em­pá­tica re­lação do go­verno de An­tónio Costa/​João Matos com a EDP.

A tra­dição ener­gé­tica pro­ve­ni­ente da era so­crá­tica ainda é o que era.




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