É preciso não esquecer e clarificar águas

Rui Fernandes

Não se trata de julgar os ex-com­ba­tentes que se viram em­pur­rados para uma guerra in­justa e in­de­se­jada

«Por cima de tudo, porque mais alto e mais belo, de­vemos or­ga­nizar cada vez mais efi­caz­mente e me­lhor a pro­tecção das raças in­fe­ri­ores cujo cha­ma­mento à nossa ci­vi­li­zação cristã é uma das mais altas obras da ci­vi­li­zação por­tu­guesa
Sa­lazar, 1933

Em Junho de 1955, podia ler-se na edição clan­des­tina do Avante!: «o co­lo­ni­a­lismo tem os seus dias con­tados. Nem os dis­cursos de Sa­lazar, nem os planos, nem as me­didas de guerra, nem a in­ten­si­fi­cação da re­pressão e da ex­plo­ração o po­derão salvar.»
Era o pre­núncio, seis anos antes, de uma guerra pa­tro­ci­nada pelos se­nhores do re­gime e a que a Re­vo­lução de Abril pôs termo evi­tando males mai­ores, no­me­a­da­mente no plano mi­litar. Uma guerra uti­li­zada pelo re­gime fas­cista com o ob­jec­tivo de, por um lado, manter o im­pério co­lo­nial e o do­mínio sobre An­gola, Guiné e Mo­çam­bique e, por outro, as­se­gurar a con­ti­nui­dade da di­ta­dura e a so­bre­vi­vência do re­gime.
Uma guerra contra os povos afri­canos que lu­tavam pela li­ber­tação na­ci­onal e que, ao longo de 13 anos, en­vol­veria su­ces­sivas ge­ra­ções de jo­vens por­tu­gueses, pro­vo­cando cen­tenas de mi­lhares de ví­timas.
Uma guerra que, jus­ta­mente, não é hoje mo­tivo de or­gulho para Por­tugal.
Vem isto a pro­pó­sito da po­lé­mica sur­gida em torno da morte do Te­nente-co­ronel Mar­ce­lino da Mata, eri­gido em herói na­ci­onal pelos sec­tores mais con­ser­va­dores e re­ac­ci­o­ná­rios da so­ci­e­dade por­tu­guesa, que não perdem uma opor­tu­ni­dade para exor­cizar os seus fan­tasmas do pas­sado e atacar o 25 de Abril. Mas também pela con­tro­vérsia que en­volveu a pre­sença do Pre­si­dente da Re­pú­blica e das che­fias mi­li­tares no seu fu­neral. Uma ce­ri­mónia a que o mi­nistro da De­fesa Na­ci­onal não com­pa­receu, con­si­de­rando na Co­missão de De­fesa, quando con­fron­tado com o facto, que teve «a abor­dagem apro­priada» para um go­ver­nante num «Por­tugal de­mo­crá­tico».
Todas as guerras deixam as suas marcas. Por isso, não se trata de julgar os ex-com­ba­tentes que se viram em­pur­rados para uma guerra in­justa e in­de­se­jada, muito menos de os en­volver na ge­ne­ra­li­zação da prá­tica de crimes de guerra. Antes, im­porta falar do dé­fice de de­bate sobre a guerra em si mesma, dos seus man­dantes, civis e mi­li­tares, sem apagar com­por­ta­mentos ina­cei­tá­veis, de­sig­na­da­mente os as­su­midos e cul­ti­vados por Mar­ce­lino da Mata, in­to­le­rá­veis nas Forças Ar­madas de um País de­mo­crá­tico, onde não de­verá haver lugar para sau­do­sismos.
O pro­pa­gan­dear do ale­gado he­roísmo de Mar­ce­lino da Mata e do seu cur­rí­culo po­lí­tico-mi­litar, mais do que pro­curar honrar a me­mória de todos quantos lu­taram numa guerra para a qual a es­ma­ga­dora mai­oria foi ar­ras­tada, visa servir os in­te­resses dos sau­do­sistas do im­pério que ca­valgam a onda po­pu­lista e re­ac­ci­o­nária vi­sando o re­gime de­mo­crá­tico.   




Mais artigos de: Argumentos

A literatura da Guerra Colonial

No ano de brasa de 1961, em Fevereiro, há sessenta anos portanto, os movimentos de libertação angolanos iniciavam, com o ataque à cadeia de Luanda, a primeira das insurreições armadas que se estenderiam, nos anos seguintes, a outros territórios do império colonial: Moçambique e Guiné. Mais de...

Incomunicáveis

Não é uma incomunicabilidade completa, entenda-se: nesta como em muitas outras matérias a total privação não acontece facilmente, e ainda bem, mas é de recear, talvez até seja provável, que a particular versão de prisão domiciliária que o confinamento constitui acabe por enfraquecer laços de convívio. Ora, o convívio é a...