- Nº 2474 (2021/04/29)
No centenário do seu nascimento

Vasco é nome de Abril

Temas

Nascido faz no próximo dia 3 de Maio cem anos, Vasco Gonçalves foi primeiro-ministro entre Junho de 1974 e Setembro de 1975 (no II, III, IV e V governos provisórios): um período curto, mas intenso, em que emergiu como um revolucionário íntegro e corajoso, profundamente ligado às mais profundas aspirações do povo, para quem será sempre o Companheiro Vasco.

O nome de Vasco Gonçalves confunde-se com a Revolução de Abril, da qual foi um dos mais destacados – e empenhados – protagonistas. É a sua assinatura que se encontra nos decretos governamentais que consagram as mais avançadas conquistas revolucionárias: a nacionalização da banca, dos seguros e de outros sectores estratégicos da economia; a instituição da Reforma Agrária; a criação dos subsídios de desemprego e de Natal para reformados e pensionistas, e da licença de parto; a suspensão dos despedimentos sem justa causa e a garantia dos direitos à greve e à negociação colectiva; o estabelecimento legal da liberdade de associação e de actividade dos partidos políticos.

Foi também nos governos de Vasco Gonçalves que o salário mínimo nacional (criado logo em Maio de 1974) subiu consideravelmente, que se melhorou o regime de protecção social dos trabalhadores agrícolas, que foram tomadas importantes medidas de carácter social, nas áreas do ensino – com as campanhas de alfabetização; da saúde – caso do envio de médicos para a periferia; e da habitação – com o início da erradicação das barracas, onde à data da Revolução vivia mais de um milhão de portugueses.

Como é evidente, estas conquistas não foram obra de um homem só. Aliás, foi a luta das massas populares o «factor determinante das transformações democráticas e revolucionárias levadas a cabo e das decisões progressistas do poder político» (Álvaro Cunhal, A Revolução Portuguesa – o Passado e o Futuro, 1976). Contudo, e como o processo revolucionário bem demonstrou, não foi de modo algum indiferente estar à frente do governo alguém, como o General Vasco Gonçalves, tão profundamente identificado com essa mesma luta.

Foi o próprio Vasco Gonçalves quem, no I Congresso da Intersindical, em Julho de 1975, o realçou: «Não foram só os militares que fizeram o que hoje está feito em Portugal. Foram vocês, foram as classes trabalhadoras, em aliança estreita com os militares, que o fizeram e isso já vinha de trás.»

 

Revolucionário ímpar

Nenhum outro governante em Portugal (e bem poucos no mundo) despertou tantas paixões quanto o General Vasco Gonçalves. Para o povo trabalhador, os democratas, os militares revolucionários, ele era o Companheiro Vasco, o que exercia o poder em benefício das classes e camadas populares e consagrava na letra da lei as conquistas da sua luta. No seu livro O Sindicalismo na Revolução de Abril (Edições Avante!, 2010), Américo Nunes recorda a sua participação no já referido I Congresso da Intersindical, a intervenção que aí proferiu e o entusiasmo com que foi recebido: «Ele era um de nós, e dos melhores! Como poderíamos não estar com ele? Foi aplaudido de pé, merecidamente, durante mais de dez minutos.»

Na Revolução de Abril travou-se uma intensa luta – de classes – entre os que construíam um País verdadeiramente democrático e os que, de modo mais ou menos assumido, queriam manter intactas as estruturas económicas do fascismo: o poder dos monopólios (associados ao imperialismo) e dos latifundiários. Neste confronto, Vasco Gonçalves surgia como baluarte dos sectores progressistas do Movimento das Forças Armadas, e da sua estreita ligação com o movimento popular, e do avanço da revolução rumo ao socialismo.

Em Maio de 1975, numa sessão promovida pelo CPPC, comemorativa da derrota do nazi-fascismo na Europa, o primeiro-ministro afirma: «Uma revolução no sentido do socialismo, como a nossa, implica o controlo progressivo dos meios de produção pelos trabalhadores bem como a garantia de que as mais-valias criadas se aplicam em benefício da colectividade. Implica também a existência de uma democracia real, aberta a todas as liberdades, excepto à liberdade de explorar.»

Não admira, pois, que o seu afastamento do governo e do MFA tenha passado a ser, em dado momento, um dos objectivos principais das forças contra-revolucionárias, mesmo das que ostentavam cravos na lapela. Sobre nenhum outro governante foram lançadas tantas calúnias, tantas ofensas, tantas injúrias. Numa longa entrevista concedida a Maria Manuela Cruzeiro, publicada em livro em 2002, Vasco Gonçalves afirmava: «Amado por uns... Odiado por outros... Como poderão gostar de mim os grandes senhores do dinheiro, os homens dos grupos económicos e suas clientelas, os latifundiários, etc.?»

 

Presente nas lutas justas

Afastado do governo e do MFA em Setembro de 1975, o General Vasco Gonçalves não se ausentou da actividade política e da defesa intransigente dos valores de Abril. Nas comemorações populares na Avenida da Liberdade e nas manifestações do 1.º de Maio da CGTP-IN, a sua presença foi constante e era carinhosamente saudada por esse povo que tão abnegadamente defendeu e que, pelos anos fora, se manteve firme em defesa das conquistas e valores de Abril.

De facto, o reconhecimento pela acção revolucionária do Companheiro Vasco permaneceu muito para além daqueles parcos (mas tão intensos) 14 meses e o seu funeral, em Junho de 2005, demonstrou-o. Ignorado pelos seus inimigos, foram muitos milhares os que fizeram questão de se despedir do militar revolucionário, com lágrimas, sim, mas sobretudo com punhos cerrados e a convicção de que o povo unido jamais será vencido. Confirmava-se, assim, o que o Secretariado do Comité Central do PCP afirmara nessa triste ocasião: que esta «figura maior da história do nosso País» ficaria na «memória e no coração dos trabalhadores e do povo português».

Até ao fim da sua vida, Vasco Gonçalves foi ainda um firme defensor da paz e da solidariedade com os povos em luta contra o imperialismo. Nos anos 80, participa nas várias Marchas pela Paz e pelo desarmamento. Em 1991, é-lhe atribuída em Havana pelo próprio Raúl Castro a Ordem de Solidariedade com Cuba; e em 1998 participa no grande comício de Matosinhos, com o Comandante Fidel: «Quando entrei e a assistência, que enchia por completo o pavilhão, se apercebeu da minha presença, de pé, em uníssono, saudou-me com entusiasmo. Tinham passado vinte e quatro anos sobre o 25 de Abril», recordou a Maria Manuela Cruzeiro.

Em 1979 e 1993, respectivamente, recebe Yasser Arafat e Nelson Mandela quando estes visitaram Portugal. Em 2004 enviou uma intervenção para ser lida numa Conferência Internacional de Solidariedade com a Revolução Bolivariana da Venezuela, a qual o Comandante Hugo Chávez agradeceu numa emotiva carta.

Apoiou a CDU em sucessivos actos eleitorais e participou em diversas campanhas da coligação que reúne comunistas, ecologistas e democratas sem partido. A sua participação em qualquer evento, como o próprio dizia, era «influenciada por razões políticas e ideológicas».

 

Militar antifascista

Nascido a 3 de Maio de 1921, em Lisboa, Vasco Gonçalves desenvolveu ainda jovem sólidos sentimentos antifascistas, apesar das convicções conservadoras do pai. Na Universidade, toma contacto com o marxismo, que o marcaria profundamente para toda a vida. Como dirá mais tarde, a propósito da sua acção governativa: «Estava a levar à prática ideias que abracei ao longo de toda a minha vida.»

Na Escola do Exército, entra para a Arma de Engenharia, formando-se como engenheiro. É com esta função que entra para a carreira militar, combinando-a com a de professor na Escola do Exército. A guerra colonial acentua-lhe as convicções anticoloniais e, em 1973, participa no Movimento das Forças Armadas, sendo então um dos seus militares mais graduados, com o posto de coronel.

Quando a Revolução irrompe, tinha 52 anos e era, entre os militares revolucionários, aquele que demonstrava uma mais sólida formação política, o que não terá sido alheio à sua designação como primeiro-ministro em Junho de 1974, apesar das reservas manifestadas pelo então Presidente da República, António de Spínola (que se revelou um dos principais conspiradores contra Abril).

Os meses em que, à frente de quatro governos provisórios, deu um contributo determinante para a transformação profunda da realidade política, económica e social do País foram, como disse em várias ocasiões, os «mais felizes» da sua vida – e os mais luminosos da história nacional.

 

Centenário celebrado em várias iniciativas

A Associação Conquistas da Revolução (ACR) está a celebrar o Centenário do nascimento do General Vasco Gonçalves com um vasto programa de iniciativas, do qual constam a edição de uma exposição, a publicação do livro Quem foi Vasco Gonçalves? e de uma brochura, a edição de uma medalha comemorativa e ainda várias iniciativas públicas. Já na semana passada, no distrito do Porto, realizaram-se duas delas: um espectáculo em Gaia e um colóquio em Matosinhos.

No próprio dia 3 de Maio, a ACR acolhe na sua sede, pelas 15 horas, uma sessão evocativa reservada a sócios, onde também será inaugurada uma exposição. No mesmo dia, a Fundação José Saramago acolhe a exibição do documentário Vasco Gonçalves – o General no seu Labirinto, realizado por Edgar Feldman, com texto de Pedro Caldeira Rodrigues e locução de Fernando Alves. A sessão tem lugar às 18h30 e conta com a presença do realizador, do produtor Paulo Guerra e de representantes da ACR.

Ainda no dia 3, a Associação Conquistas da Revolução estará presente na cerimónia de inauguração da placa toponímica da Rua Vasco Gonçalves, numa iniciativa da Câmara Municipal de Lisboa e da Junta de Freguesia do Lumiar.

Para dia 9 de Maio às 15 horas está marcada uma sessão solene nas instalações da Voz do Operário, em Lisboa, evocativa do centenário do nascimento do Companheiro Vasco. Participam artistas e vários membros da Comissão de Honra das Comemorações.

Até final do ano estão previstas muitas outras iniciativas em diversos pontos do País.

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Esta dinamização [da actividade económica do País] vai orientar-se essencialmente na consolidação da política anti-monopolista do programa do MFA e na defesa das classes mais desfavorecidas. Esta política foi iniciada com a nacionalização da Banca e dos Seguros e com a intervenção decidida em algumas empresas-chave de vários sectores da actividade económica.

(Vasco Gonçalves, Março de 1975)

 

Não temos um caminho fácil à nossa frente, a libertação do homem não é fácil, mas eu pergunto: quando os objectivos são a liberdade e a justiça, o que é que pode travar a vontade e a capacidade de luta das massas trabalhadoras?

(Vasco Gonçalves, 17 de Maio de 1975)

 

“A Revolução não é de ninguém: é de todos. Por isso, agora que o fascismo — mercê das nossas hesitações, ambiguidades e querelas subalternas — está a levantar cabeça para recuperar o perdido em 25 de Abril, todos os antifascistas, todos os patriotas, todos os democratas, seja qual for o partido político a que pertencem, devem unir-se numa Frente de defesa das liberdades democráticas, inabalável e indestrutível!”

(Vasco Gonçalves, Agosto de 1975)

 

“Mas estas conquistas [da revolução de Abril] têm sido, em particular no domínio económico e social, destruídas na sua maior parte ou seriamente comprometidas pelas política de direita e contra-revolucionária dos sucessivos governos constitucionais.”

(Vasco Gonçalves, Abril de 1999)

 

“Neste momento, de tão pesadas e concretas ameaças para a independência e a autodeterminação de Cuba, desejo afirmar a minha profunda e bem sentida solidariedade com a Revolução Cubana. Cuba, bloqueada, demonstra a todo o mundo que é possível resistir ao imperialismo, ao império norte-americano.”

(Vasco Gonçalves, Julho de 2001)

 

Afastaram o general, afastaram o primeiro-ministro. Não afastaram o ‘companheiro Vasco’ do coração de muitas e muitas centenas de milhar de portuguesas e portugueses para quem a gratidão não é uma palavra vã.

(Álvaro Cunhal, A Verdade e a Mentira na Revolução de Abril)

 

A Revolução de Abril vive na vitória da Revolução Bolivariana porque a primeira constitui um precedente do que podem realizar o povo e os seus soldados quando se unem. Dela emana um exemplo para o mundo.

(Carta de Hugo Chávez a Vasco Gonçalves, 2004)