Trabalho escravo: surpresa ou cumplicidade?

João Oliveira (Membro da Comissão Política)

A 29 de novembro de 2012 o PCP questionava o governo PSD/CDS de Passos e Portas, especificamente os ministérios da Economia e do Emprego, da Administração Interna e da Solidariedade e da Segurança Social, sobre a situação dos trabalhadores agrícolas imigrantes no distrito de Beja.

A COVID-19 expôs o drama humanitário de milhares de trabalhadores agrícolas

Identificavam-se situações de exploração laboral, de habitação em condições indignas, de crianças sem acesso à escola e, em síntese, caracterizava-se a situação como «um problema de contornos humanitários e de exploração ilegal de mão-de-obra».

O governo de Passos e Portas encolheu os ombros, agarrou-se de novo aos papéis do pacto de agressão assinado entre as troicas e prosseguiu com a sua política de agravamento da exploração e empobrecimento e a sua acção de liquidação de direitos laborais e sociais, acção que desenvolveu em geral contra todos os trabalhadores e em particular também contra aqueles trabalhadores, na sua maioria estrangeiros, referidos pelo PCP.

Desde 2012 tivemos um governo PSD/CDS e dois governos PS e sucederam-se as iniciativas do PCP com perguntas escritas ao governo, questionamento de ministros em audições parlamentares, projectos de resolução, iniciativas em comissões parlamentares, visitas ao local e contactos directos com as comunidades em causa, reuniões com as estruturas do SEF que iam acompanhando a situação com proximidade, encontros com serviços de saúde, educação ou segurança social.

Essa intervenção na Assembleia da República juntou-se à intervenção autárquica local da CDU para que, a partir da realidade que ali se vivia, se pusessem em prática as medidas necessárias à solução dos problemas sentidos pelas populações que integram o perímetro de rega do Mira, incluindo as comunidades imigrantes que ali se instalaram.

Passaram mais de oito anos e três governos sem que esses problemas tivessem tido solução. Pelo contrário, tornaram-se progressivamente mais graves com a passagem do tempo e a inacção dos governos.

O problema sanitário da COVID-19 em Odemira expôs com cruel evidência o drama humanitário daqueles milhares de trabalhadores agrícolas do perímetro de rega do Mira, tornou impossível continuar a ignorar ou ocultar a bárbara exploração a que aqueles trabalhadores são sujeitos e deixou a descoberto as desumanas fundações em que assenta o sucesso do agro-negócio.

Agora que tudo isso se tornou óbvio aos olhos de um país inteiro, autores e cúmplices daquela situação disfarçam responsabilidades próprias apontando culpas alheias.

Falam da responsabilidade do Estado para silenciar a responsabilidade (inclusivamente criminal) dos exploradores de mão-de-obra. Acusam o Estado de ter falhado quando foram eles próprios que conduziram os destinos do Estado agindo como cúmplices dos exploradores. Clamam pela surpresa da situação que agora lhes é revelada quando, na verdade, foram eles que lhe fecharam os olhos durante anos. Apontam o dedo à falta de fiscalização para desviarem as atenções da natureza da exploração capitalista agrária cuja prosperidade impõe como preço uma tragédia humana daquelas proporções.

No coro nacional de surpresa e indignação que se levantou face ao drama daqueles milhares de trabalhadores agrícolas no perímetro de rega do Mira é preciso distinguir duas realidades distintas. Por um lado, as expressões genuínas de surpresa e indignação, sobretudo de quem ganha a vida com o seu trabalho, se revê naqueles trabalhadores como seus semelhantes e se condói com a situação desumana a que estão sujeitos. Por outro lado, e numa posição antagónica, as expressões cínicas e fingidas de surpresa e indignação por parte de quem é autor ou tem sido cúmplice – por acção, omissão ou silenciamento – do que se passa no perímetro de rega do Mira, noutros pontos do país e noutras áreas de actividade ou de quem chega mesmo ao cúmulo de sobrepor o valor do negócio do arrendamento de apartamentos ao valor da vida humana.

O futuro do País exige que a unidade e a luta dos primeiros vençam as concepções retrógradas dos segundos.




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