Uma farsa pouco original

João Ferreira

O processo de integração capitalista europeu desenvolveu-se, em termos gerais, nas costas dos povos, desprezando, ou mesmo afrontando, a sua participação e opinião. É longo o cortejo de referendos cujo resultado foi desrespeitado, com repetições sucessivas a serem impostas, marteladas com pressões e chantagens várias, até que o resultado desse o pretendido. Igualmente longa é a lista de referendos que não foram realizados, apesar de reclamados, de forma a prevenir resultados indesejados. De Maastricht a Lisboa, passando pela moeda única, passos (ou saltos) significativos na integração, com impactos profundos na vida dos trabalhadores e dos povos, foram sempre dados evitando, impedindo, deturpando, desrespeitando a sua participação.

Tal nunca impediu aqueles que determinam o curso do processo de integração de procurar formas de legitimação das suas próprias opções, inclusivamente instrumentalizando a «opinião» dos mesmos «cidadãos» que sempre fizeram por ignorar.

A própria noção, inventada com o Tratado de Maastricht, de uma pretensa «cidadania europeia» foi e é instrumental na busca de justificações e de uma legitimação para o aprofundamento federalista da União Europeia, com a crescente usurpação das soberanias nacionais e a concentração de poder na esfera supranacional, o mesmo é dizer, nas potências europeias que a controlam.

A Conferência sobre o Futuro da Europa insere-se nesta dinâmica.

Numa recente declaração conjunta dos presidentes da Comissão Europeia, do Conselho da UE e do Parlamento Europeu, um autêntico monumento ao cinismo, que lança a dita Conferência, afirma-se que «a UE tem de dar resposta às preocupações e ambições dos cidadãos». A pandemia de COVID-19, também aqui, parece ser a justificação perfeita para levar por diante projetos e conclusões pré-estabelecidas. Pouco importa que a Conferência já estivesse decidida mesmo antes da pandemia, que agora é usada para justificar a sua necessidade.

Há que «dar voz aos cidadãos sobre os assuntos que lhes interessam», dizem-nos. Mas antes que estes possam sequer pronunciar-se, os organizadores da Conferência tratam de definir quais são os assuntos que interessam aos cidadãos, delimitando dez áreas temáticas sobre as quais estes se devem pronunciar, através de eventos que devem reflectir «os valores da UE». Uma desavergonhada farsa.

A participação tem, portanto, de obedecer a cânones pré-formatados, de forma a garantir, tanto quanto possível, a ausência de desvios face às conclusões pré-determinadas. Toda a estruturação da Conferência concorre para este objetivo.

Nada disto é novo. A Conferência tem antecedentes na Convenção sobre o futuro da Europa, lançada 2001, para, imagine-se, debater «o futuro da União Europeia». Sabemos no que deu. A Convenção elaborou o que veio a ser o projeto de Tratado que estabelecia uma «Constituição para a Europa». Em dois referendos, realizados em França e na Holanda, os cidadãos acertaram contas com algo que outros diziam ter sido feito em seu nome. Chumbaram a Constituição. A mesma que lhes foi depois imposta como Tratado de Lisboa, ratificado sem direito a referendos em 26 dos 27 Estados-Membros.




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