22 de Junho de 1941

Agressão à URSS o início do fim do nazi-fascismo

Gustavo Carneiro

A 22 de Junho de 1941 os exér­citos hi­tle­ri­anos cru­zaram a fron­teira so­vié­tica, dando início à Ope­ração Bar­ba­rossa, que vi­sava a rá­pida ocu­pação (e des­man­te­la­mento) da União das Re­pú­blicas So­ci­a­listas So­vié­ticas – o pri­meiro Es­tado so­ci­a­lista da his­tória –, o saque dos va­li­osos re­cursos da­quele imenso país e a sub­ju­gação e es­cra­vi­zação, senão mesmo o ex­ter­mínio, dos seus povos.

Mas o Im­pério dos Mil Anos anun­ciado por Hi­tler, e de­se­jado pelos mo­no­pó­lios que o sus­ten­tavam, aca­baria por ruir pre­ci­sa­mente ali, na União So­vié­tica, pe­rante a gesta he­róica da re­sis­tência do seu povo, do seu Exér­cito Ver­melho, do seu Par­tido Co­mu­nista.

Foi com o con­tri­buto de­ter­mi­nante da União So­vié­tica que o nazi-fas­cismo foi der­ro­tado

Nas pri­meiras horas desse 22 de Junho pôs-se em mo­vi­mento aquela que foi a maior ope­ração mi­litar única de que há re­gisto his­tó­rico, en­vol­vendo mais de três mi­lhões de ho­mens numa frente de ba­talha de mi­lhares de qui­ló­me­tros. Pondo em prá­tica os prin­cí­pios da Guerra Re­lâm­pago, que tantos e tão rá­pidos êxitos mi­li­tareslhe ga­rantiu no resto da Eu­ropa, o nazi-fas­cismo avançou numa frente que se es­tendia por mi­lhares de qui­ló­me­tros.

Os su­cessos ini­ciais le­varam o es­tado-maior hi­tle­riano a anun­ciar com pompa que a vi­tória total es­taria para breve. Mas logo no início de Julho o mi­nistro da Pro­pa­ganda do Reich, Goebbels, ano­tava no seu diário que, «em geral, se com­bate [em ter­ri­tório so­vié­tico] muito dura e obs­ti­na­da­mente. Não se pode de modo algum falar em pas­seio. O re­gime ver­melho mo­bi­lizou o povo». No dia 24, cons­ta­tava a «du­reza da luta que se trava no Leste» e a 1 de Agosto re­co­nhecia os erros de ava­li­ação acerca da­quela que era a ver­da­deira «força mi­litar so­vié­tica. Os bol­che­vi­ques re­velam uma re­sis­tência maior do que a que su­pú­nhamos».

Se é certo que, nos pri­meiros meses de guerra, as hordas hi­tle­ri­anas não ces­saram de avançar por ter­ri­tório so­vié­tico adentro – ocu­pando vastos ter­ri­tó­rios da Rússia, da Bi­e­lor­rússiae da Ucrânia, cer­cando Le­ni­ne­grado e apro­xi­mando-se de Mos­covo – não é menos ver­dade que foi aí que, pela pri­meira vez em toda a guerra, se de­pa­raram com uma re­sis­tência efec­tiva: o he­roísmo dos de­fen­sores da For­ta­leza de Brest (uma das ci­dades-herói) so­bressai nestes pri­meiros dias da agressão, mas os exem­plos de fir­meza su­cedem-se em toda a frente.

Não tar­dará até o es­tado-maior dos exér­citos agres­sores ve­ri­ficar as di­fe­renças exis­tentes entre as cam­pa­nhas do Oci­dente e da Po­lónia, nas quais as «forças do ini­migo cer­cadas se ren­diam quase a 100%», e o que su­cedia na União So­vié­tica, onde todas as in­for­ma­ções «con­fir­mavam que os russos com­batem em toda a parte até ao úl­timo homem». O pró­prio Hi­tler e os seus ge­ne­rais, pouco dados a ad­mitir der­rotas, são for­çados a re­co­nhecer o fa­lhanço da Guerra Re­lâm­pago na URSS e a re­de­finir os seus ob­jec­tivos. Entre eles so­bressaía a con­quista de Mos­covo até ao início do In­verno.

Porém, seria pre­ci­sa­mente às portas da ca­pital so­vié­tica que a má­quina de guerra nazi-fas­cista so­freu a sua pri­meira der­rota em toda a guerra: quando, em Abril de 1942, ter­mina a ba­talha de Mos­covo, ti­nham aí per­dido um mi­lhão e meio de ho­mens, cinco vezes mais do que na an­te­rior ocu­pação de 11 países eu­ro­peus.

A vi­tória so­vié­tica em Mos­covo der­rubou de­fi­ni­ti­va­mente o mito da in­ven­ci­bi­li­dade alemã e em­purrou os ocu­pantes para longe de Mos­covo, li­ber­tando mi­lhares de po­vo­a­ções an­te­ri­or­mente ocu­padas. Muitas ou­tras se se­gui­riam.

 

Con­ver­gên­cias e cum­pli­ci­dades

Se poucos po­de­riam prever com exac­tidão a in­vasão da União So­vié­tica para aquele dia 22 de Junho, di­fi­cil­mente ela terá dei­xado al­guém ver­da­dei­ra­mente sur­pre­en­dido. A pers­pec­tiva de des­truição do co­mu­nismo, tanto na Ale­manhanazicomo nas po­tên­cias ca­pi­ta­listas oci­den­tais, ani­mava Hi­tler e seus mais pró­ximos co­la­bo­ra­dores desde o início do mo­vi­mento nazi.

Já nos pri­meiros anos da dé­cada de 1920, o fu­turo Führer ma­ni­fes­tava aber­ta­mente o de­sejo de se trans­formar no «ex­tir­pador do mar­xismo». Mais ou menos na mesma al­tura, o di­ri­gente da in­dús­tria pe­sada do Rühr, Hugo Stinnes, con­fes­sava ao em­bai­xador norte-ame­ri­cano na Ale­manha a ne­ces­si­dade de «en­con­trar um di­tador que tenha o poder de fazer tudo o que é ne­ces­sário. (…) A sua che­gada sig­ni­fi­cará antes de mais o início de um com­bate contra o co­mu­nismo».

De facto, não tar­daria muito até que os nazis unissem os seus des­tinos aos grandes mo­no­pó­lios ale­mães, que os co­lo­caram no poder, fi­nan­ci­aram, ar­maram e, por fim, be­ne­fi­ci­aram da sua po­lí­tica mi­li­ta­rista, ex­pan­si­o­nista e es­cla­va­gista (em 1943, ha­veria 12 mi­lhões de tra­ba­lha­dores es­cra­vi­zados a tra­ba­lhar na Ale­manha). Muito em­bora esta cum­pli­ci­dade não tenha sido pu­nida no Tri­bunal de Nu­rem­berga, em grande me­dida de­vido à opo­sição norte-ame­ri­cana, foi o pró­prio pro­cu­rador dos EUA a re­alçar que «sem a acção con­junta dos in­dus­triais ale­mães e do par­tido nazi, Hi­tler nunca teria to­mado o poder na Ale­manha, nem o teria con­so­li­dado». A Co­missão Kil­gore, no­meada pelo Se­nado norte-ame­ri­cano, chegou a con­clu­sões se­me­lhantes.

Mas a grande bur­guesia alemã não es­tava so­zinha neste apoio ao nazi-fas­cismo, que via como o mais só­lido ins­tru­mento para es­magar os co­mu­nistas e a União So­vié­tica. As elites di­ri­gentes do Reino Unido e da Françapar­ti­lhavam no es­sen­cial da mesma pers­pec­tiva, vi­sível na to­le­rância (para dizer o mí­nimo) com que ob­ser­varam o re­ar­ma­mento e ex­pan­si­o­nismo da Ale­manha nazi. O jor­na­lista bri­tâ­nico Ale­xander Werth re­alça, na sua obra A Rússia na Guerra, que «com in­ten­si­dade va­riável, o apa­zi­gua­mento tor­nara-se a po­lí­tica ofi­cial da In­gla­terra e da França – apa­zi­gua­mento no golpe da Re­nânia, na questão es­pa­nhola, na Áus­tria e na Che­cos­lo­vá­quia. [O Pacto de] Mu­nique fora o triunfo re­cente desta po­lí­tica».

A URSS, ao mesmo tempo que com­batia ac­ti­va­mente o as­censo do nazi-fas­cismo em Es­panha, via bri­tâ­nicos e fran­ceses re­cu­sarem su­ces­sivas pro­postas suas para o isolar e travar, ao mesmo tempo que em­pur­ravam Hi­tler e os seus exér­citos para Leste: só quando se tornou evi­dente que não po­deria contar com as cha­madas de­mo­cra­cias oci­den­tais, é que a URSS de­cidiu as­sinar com a Ale­manha um tra­tado de não agressão, que lhe per­mitiu ga­nhar quase dois anos para pre­parar a de­fesa face à ine­vi­tável in­vasão.

 

A es­tranha guerra

A cum­pli­ci­dade bri­tâ­nica e fran­cesa com as pre­ten­sões do nazi-fas­cismo a Leste con­ti­nu­aram para lá da de­cla­ração de guerraà Ale­manha nazi, em Se­tembro de 1939, na sequência da in­vasão alemã da Po­lónia: pese em­bora a enorme su­pe­ri­o­ri­dade mi­litar anglo-fran­cesa, não se re­gistou qual­quer acção mi­litar contra a Ale­manha nazi até Maio de 1940, quando as forças hi­tle­ri­anas ini­ci­aram a in­vasão da Bél­gica, da Ho­landa, do Lu­xem­burgo e da França. Em Nu­rem­berga, o chefe do es­tado maior da Wehr­macht, Jodl, afirmou mesmo que «se nós não fomos der­ro­tados na Po­lónia em 1939 isso deveu-se apenas a que no Oci­dente, no pe­ríodo da cam­panha po­laca, 110 di­vi­sões fran­cesas e in­glesas se “opu­seram” em com­pleta inacção a 25 di­vi­sões alemãs». Este pe­ríodo passou à his­tória como a guerra es­tranha.

Ao con­trário dos cír­culos di­ri­gentes in­gleses, fran­ceses e norte-ame­ri­canos, a di­recção so­vié­tica há muito que com­pre­en­dera que a guerra que se adi­vi­nhava tinha uma na­tu­reza dú­plice: se por um lado era uma guerra inter-im­pe­ri­a­lista pelo do­mínio de co­ló­nias, mer­cados e ma­té­rias-primas, que se ini­ciara já há muito, por outro es­condia a am­bição das po­tên­cias im­pe­ri­a­listas de des­truir o pri­meiro Es­tado so­ci­a­lista. De­ter­mi­nado a não voltar a com­bater si­mul­ta­ne­a­mente em duas frentes, como em 1914-1918, Hi­tler ataca pri­meiro a Oci­dente: ocupa fa­cil­mente a França e fus­tiga a In­gla­terra com bru­tais bom­bar­de­a­mentos aé­reos, pe­rante a pas­si­vi­dade norte-ame­ri­cana, que de­creta a sua neu­tra­li­dade.

Só então os nazi-fas­cistas apontam de­ci­si­va­mente ao seu alvo prin­cipal, a União So­vié­tica.

 

Uma luta he­róica

14 mil vidas por dia: são desta ordem de gran­deza as perdas so­vié­ticas na Se­gunda Guerra Mun­dial, desde esse fa­tí­dico 22 de Junho de 1941 até ao glo­rioso 9 de Maio de 1945, quando o Exér­cito Ver­melho forçou a ren­dição do nazi-fas­cismo, em Berlim, ca­pital do Reich. Mas a con­tri­buição so­vié­tica para a der­rota do pro­jecto de do­mínio da Raça dos Se­nhores, de que fa­lava a pro­pa­ganda nazi, não se mede apenasem mais de 20 milhões de mortos: ali foram tra­vadas as ba­ta­lhas de­ci­sivas, que vi­raram de­fi­ni­ti­va­mente o curso da guerra, e ali perdeu o nazi-fas­cismo 80 por cento dos seus efec­tivos mi­li­tares e 607 di­vi­sões, mais do triplo do que a soma das res­tantes frentes.

Com a vi­tória em Sta­li­ne­grado, a maior ba­talha da his­tória, a guerra entrou numa nova fase, em que à ex­pulsão do in­vasor do ter­ri­tório so­vié­tico se somouum outro ob­jec­tivo, o da li­qui­dação da ordem fas­cista na Eu­ropa. Golpe após golpe, as forças nazi-fas­cistas foram for­çadas a re­cuos con­se­cu­tivos; um após outro, os países ocu­pados foram li­ber­tados (e com eles 113 mi­lhões de pes­soas), pela acção con­ju­gada do Exér­cito Ver­melho e dos mo­vi­mentos de re­sis­tência po­pular, em que os co­mu­nistas as­su­miam um des­ta­cado pro­ta­go­nismo.

Quando as forças anglo-ame­ri­canas de­sem­barcam na Nor­mandia, em Junho de 1944, 92 por cento das tropas nazi-fas­cistas com­ba­tiam na frente Lestee por lá con­ti­nu­aram 74 por cento destas, mesmo após a aber­tura da tão an­siada (e há muito pro­me­tida) se­gunda frente. Em fi­nais de Abril de 1945, os so­vié­ticos en­con­travam-se às portas de Berlim e no início de Maio a ban­deira ver­melha com a foice e o mar­telo on­du­lava já no topo do Rei­chstag.

Se o Exér­cito Ver­melho teve um papel de­ter­mi­nante na vi­tória sobre o nazi-fas­cismo, é parca ex­pli­cação pro­curar apenas na es­tra­tégia e tác­tica mi­li­tares o se­gredo do êxito so­vié­tico. Quem ga­nhou a guerra e li­bertou o mundo do nazi-fas­cismo foi um sis­tema eco­nó­mico e so­cial su­pe­rior,capaz de or­ga­nizar a pro­dução em tempo de guerra e trans­ferir enormes uni­dades pro­du­tivas para o in­te­rior do país, co­lo­cando-as a salvo do in­vasor, e a partir delas abas­tecer o exér­cito de cres­centes quan­ti­dades de ma­te­rial mi­litar, que se foi re­ve­lando su­pe­rior ao do ini­migo.

No centro deste sis­tema es­tava o Par­tido Co­mu­nista da União So­vié­tica, o par­tido de Lé­nine, que se mos­trou capaz de mo­bi­lizar toda co­ragem, de­ter­mi­nação e pa­tri­o­tismo do povo so­vié­tico em de­fesa da pá­tria e do so­ci­a­lismo, de or­ga­nizar a re­sis­tência nas zonas ocu­padas, em todas e cada uma das al­deias, vilas e ci­dades, trans­for­mando o que muitos jul­gavam (e de­se­javam) que seria uma der­rota fácil e rá­pida na mais ex­tra­or­di­nária fa­çanha mi­litar da His­tória, com im­pres­si­o­nantes efeitos em todo o mundo.

Os povos de todo o mundo devem muito ao povo so­vié­tico, aos co­ra­josos guer­ri­lheiros da Bi­e­lor­rússia, de Odessa e de Se­bas­topol, aos valentes de­fen­sores de Le­ni­ne­grado e de Mos­covo, aos he­róicos com­ba­tentes de Sta­li­ne­grado, Kurskou Berlim: lu­taram, mor­reram e ven­ceram por toda a Hu­ma­ni­dade.

 

Aprender sempre!

Não se deve pro­curar pa­ra­lelos es­que­má­ticos entre o pre­sente mo­mento his­tó­rico e aquele que de­sem­bocou na in­vasão da União So­vié­tica pela Ale­manha nazi, em Junho de 1941, e na pró­pria Se­gunda Guerra Mun­dial. O que não in­va­lida que haja múl­ti­plas e úteis li­ções a re­tirar destes acon­te­ci­mentos, como foi há muito per­ce­bido pelos cen­tros de di­fusão ide­o­ló­gica do im­pe­ri­a­lismo, que in­vestem meios as­tro­nó­micos na re­es­crita desta his­tória (como de ou­tras).

Ora, para além de mos­trar que os co­mu­nistas foram pro­ta­go­nistas de pri­meiro plano no com­bate ao nazi-fas­cismo e na sua der­rota (e não co-res­pon­sá­veis pela guerra, como hoje ca­lu­ni­o­sa­mente al­guns afirmam), a his­tória da Se­gunda Guerra Mun­dial, se cor­rec­ta­mente con­tada, re­vela ainda a cum­pli­ci­dade entre as elites di­ri­gentes das cha­madas de­mo­cra­cias oci­den­tais e o nazi-fas­cismo.

Par­ti­cu­lar­mente útil para os nossos dias é a cons­ta­tação da ne­ces­si­dade de travar o passo ao mi­li­ta­rismo, à cor­rida aos ar­ma­mentos, à agressão mi­litar, por mais que estes sejam – e são – com­po­nentes in­trín­secos ao im­pe­ri­a­lismo. Es­ta­be­le­cendo, para este fim, as ali­anças e con­ver­gên­cias que se re­ve­larem úteis.

Também a so­li­da­ri­e­dade aos povos ví­timas de agressão se re­vela surge, agora como na­quele tempo, questão de­ci­siva para re­frear os ím­petos mais agres­sivos dos se­nhores da guerra. Sendo certo que não há po­derio mi­litar capaz de vergar um povo unido e de­ter­mi­nado: provam-no a União So­vié­tica, mas também o Vi­et­name, Cuba e a Pa­les­tina.

A luta contra o fas­cismo e pela paz con­tinua no nosso tempo!