A candidatura de Ruy Luís Gomes à Presidência da República

Jorge Sarabando

O início da dé­cada de 50 foi um dos pe­ríodos mais te­ne­brosos da di­ta­dura

A morte do Ge­neral Car­mona obrigou o re­gime a or­ga­nizar elei­ções pre­si­den­ciais, dois anos apenas de­pois de 1949, quando a Opo­sição De­mo­crá­tica apre­senta a can­di­da­tura do Ge­neral Norton de Matos. Apesar da ile­ga­li­zação do MUD, o es­pí­rito de uni­dade an­ti­fas­cista, se­quente ao final da II Guerra Mun­dial, es­tava ainda bem vivo. A cam­panha de Norton de Matos or­ga­nizou por todo o País enormes co­mí­cios, mas logo a se­guir gerou-se um pe­ríodo de re­fluxo na ac­ti­vi­dade po­lí­tica. Com o MUD ile­ga­li­zado, o MUD Ju­venil per­se­guido, as frac­turas na opo­sição de­mo­crá­tica fi­caram cada vez mais ex­postas.

No início da dé­cada de 50, viveu-se um dos pe­ríodos mais te­ne­brosos da di­ta­dura. A re­pressão co­nheceu então um dos seus picos mais bru­tais, com pri­sões em massa, de tra­ba­lha­dores em luta, de des­ta­cados opo­si­ci­o­nistas e de di­ri­gentes do PCP, como Álvaro Cu­nhal e Ma­nuel Ro­dri­gues da Silva, a prisão e morte de Mi­litão Ri­beiro, o as­sas­sínio de José Mo­reira e Al­fredo Lima, a morte de So­eiro Pe­reira Gomes. Cen­tenas de pes­soas ti­nham sido im­pe­didas de exercer fun­ções pú­blicas, de­zenas de pro­fes­sores uni­ver­si­tá­rios de­mi­tidos.

As di­vi­sões no campo de­mo­crá­tico eram cada vez mais pa­tentes, com os re­pu­bli­canos e so­ci­a­listas a de­mar­carem-se dos co­mu­nistas e ou­tros sec­tores de es­querda . A Guerra Fria se­guia o seu curso. O an­ti­co­mu­nismo subia de tom no dis­curso ofi­cial. Ocorreu então um facto que teve enormes re­per­cus­sões po­lí­ticas: Por­tugal foi con­vi­dado para in­te­grar o grupo de 12 países fun­da­dores da NATO, ali­ança for­mada para «pro­mover os va­lores de­mo­crá­ticos».

De um só golpe, o re­gime re­forçou a sua au­to­ri­dade e ga­nhou cre­di­bi­li­dade ex­terna, pas­sando a in­te­grar o cha­mado mundo livre. O mesmo di­tador que os­ten­tava uma foto de Mus­so­lini na se­cre­tária de tra­balho e de­cre­tara três dias de luto ofi­cial pela morte de Hi­tler, re­cebeu em Lisboa o Ge­neral Ei­se­nhower, com largos sor­risos e efu­sivos cum­pri­mentos.

Co­ragem e au­dácia

Num tempo mar­cado pelo aten­tismo, quando ga­nhava ter­reno as ilu­sões de uma tran­sição pa­cí­fica da di­ta­dura para a de­mo­cracia, era es­sen­cial a ini­ci­a­tiva po­lí­tica. Teve por isso grande re­per­cussão uma reu­nião na Voz do Ope­rário, ainda em 1949, pre­si­dida pelo Prof. Mário Aze­vedo Gomes, das co­mis­sões de Apoio a Norton de Matos que não acei­taram a ordem de dis­so­lução dada pelo Ge­neral. Acto de grande co­ragem e au­dácia, daria origem à cri­ação do Mo­vi­mento Na­ci­onal De­mo­crá­tico (MND). Um dos ele­mentos pro­gra­má­ticos ino­va­dores foi o de as­so­ciar a luta pela paz ao com­bate ao fas­cismo, de as­so­ciar a luta pela li­ber­dade à in­de­pen­dência na­ci­onal.

Entre os di­ri­gentes con­tavam-se Ruy Luís Gomes (um dos fun­da­dores do MUD), José Mor­gado, Maria Lamas, Lobão Vital, Areosa Feio, Vir­gínia Moura. Em De­zembro, toda a Co­missão Cen­tral do MND foi presa pela PIDE. Mais tarde, no re­gresso do jul­ga­mento, que de­cretou a li­ber­tação por força de uma am­nistia, formou-se um cor­tejo a partir da es­tação de S. Bento. Ao subir a Ave­nida dos Ali­ados, Ruy Luís Gomes, Lobão Vital, Vir­gínia Moura, Her­nâni Silva e ou­tros, que iam à frente, foram vi­o­len­ta­mente agre­didos pela Po­lícia, tendo de re­ceber tra­ta­mento hos­pi­talar.

Foi do MND que nasceu a can­di­da­tura à Pre­si­dência da Re­pú­blica, em 1951, de Ruy Luís Gomes. O can­di­dato do re­gime foi o Ge­neral Cra­veiro Lopes. Outra can­di­da­tura opo­si­ci­o­nista, do Al­mi­rante Quintão Mei­reles, se apre­sentou. Com largo apoio entre os ofi­ciais que fi­zeram o 28 de Maio mas se afas­taram, teve pouca ex­pressão pú­blica e viria a de­sistir antes da vo­tação.

A can­di­da­tura de Ruy Luís Gomes foi re­jei­tada pelo Con­selho de Es­tado. Antes da proi­bição, mos­trou grande ca­pa­ci­dade mo­bi­li­za­dora, tendo or­ga­ni­zado co­mí­cios em Al­mada, San­tarém, Al­pi­arça, Torres Novas e Al­ca­nena. Mas foi no co­mício Cine-Te­atro Vi­tória, em Rio Tinto, em Julho de 1951, que ocorreu um dos mo­mentos mais dra­má­ticos: com o re­cinto a trans­bordar de uma mul­tidão en­tu­siás­tica, a po­lícia efec­tuou uma carga vi­o­lenta – Ruy Luís Gomes, Lobão Vital e José Mor­gado foram agre­didos e ti­veram de re­ceber as­sis­tência hos­pi­talar.

Nestes som­brios anos 50, como ao longo dos 48 anos da Re­sis­tência, o PCP es­teve sempre ac­tivo, não perdeu a ini­ci­a­tiva po­lí­tica, soube apontar ca­mi­nhos, deu exemplo de co­ragem e de­ter­mi­nação, no que foi acom­pa­nhado por muitos ou­tros de­mo­cratas que nunca ce­deram à pressão de­sa­gre­ga­dora e es­tig­ma­ti­za­dora do an­ti­co­mu­nismo.



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