- Nº 2487 (2021/07/29)

Crónica de uma operação anunciada - ou o lobo com pele de cordeiro…

Opinião

Foi ontem apresentada em Lisboa, com comedida pompa e circunstância, a inadequadamente denominada Conferência sobre o futuro da Europa, porquanto na realidade esta versará sobre o futuro do processo de integração capitalista europeu, ou seja, da União Europeia (UE).

Procurando manipular (uma vez mais) o desconhecimento (e a premeditada deturpação) sobre a história recente que atinge as mais jovens gerações, assim como a (fomentada) perda de memória de muitos daqueles que as antecederam, a UE não tem qualquer pejo em promover (de novo) uma cínica operação de mistificação e propaganda à semelhança da que impulsionou, há cerca de vinte anos, com a chamada Convenção sobre o futuro da Europa, um artifício com que os interesses e as forças que estão no cerne da UE tentaram impor a sua dita constituição europeia.

Hoje, como então, a UE anima todo um conjunto de falácias com que intenta alcançar a legitimidade que não tem, como a eufemística e inexistente democracia europeia, um autêntico embuste com que dissimula um processo que é caracterizado pelo desrespeito da soberania nacional e da democracia, que centraliza o poder de decisão em instituições supranacionais que, na realidade, foram determinadas e são dominadas pelas grandes potências e pelos interesses dos seus grandes grupos económicos e financeiros.

Na verdade, a UE que hoje clama hipocritamente pela expressão e participação dos cidadãos dos diferentes países que a integram, é a mesma que sistematicamente desrespeitou a vontade soberamente expressa por estes, nomeadamente em inúmeros referendos.

Recorde-se por exemplo, que perante a rejeição da denominada constituição europeia pelos povos francês e holandês, em 2005, a UE recauchuta o essencial do seu conteúdo com o Tratado de Lisboa, que impõe, em 2007, evitando (onde foi possível) a realização de novos referendos. UE que, em 2008 e perante a rejeição do Tratado de Lisboa pelo povo irlandês – o único que o pôde referendar –, impôs a repetição do referendo, pressionando chantageando o povo irlandês, manobrando até alcançar o resultado que pretendia.

Consciente do seu carácter antidemocrático e da sua consequente ilegitimidade, a UE investe em novas operações de mistificação e propaganda, para encobrir a insistência na continuidade e no aprofundamento das suas políticas, que estão na origem da intensificação da exploração, das desigualdades sociais, das assimetrias de desenvolvimento e de relações de domínio e de dependência entre países, de uma postura de confrontação nas relações internacionais, de desrespeito da Carta das Nações Unidas e do direito internacional.

Embora (e em consequência das suas políticas) sejam hoje mais e maiores as contradições que minam a UE, quando comparadas com as de há vinte anos, também por isso alguns cavalgam na ideia de usar a denominada Conferência sobre o futuro da Europa paraimpulsionar um novo salto federalista que aprofunde as políticas da UE em detrimento da soberania nacional e da democracia, incluindo através de mais um alargamento da votação por maioria qualificada no Conselho ou da criação de ditas listas europeias para o Parlamento Europeu – ou seja, do reforço das grandes potências no processo de decisão –, entre outras gravosas medidas pré-anunciadas e ensejadas na Agenda Estratégica da UE e nas Prioridades da Comissão Europeia, ambas adoptadas em 2019.

Mais do que uma operação de mistificação e propaganda que visa iludir o carácter de classe da UE, o que se impõe é uma ruptura com as suas políticas neoliberais, federalistas e militaristas, para abrir caminho a uma Europa que respeite a soberania nacional e a democracia, de uma Europa de efectiva cooperação entre Estados soberanos e iguais em direitos, de progresso social e de paz.

 

Pedro Guerreiro