Que desporto temos? Que desporto queremos?

A. Melo de Carvalho

Des­taque: Na con­cepção do­mi­nante a re­lação do des­porto com o pro­cesso edu­ca­tivo é to­tal­mente eli­mi­nada

Se­lec­ti­vi­dade – com­pe­tição – for­mação de fu­turos bons atletas, eis a es­sência da de­fi­nição de des­porto de ren­di­mento do­mi­nante em Por­tugal, vi­sando a alta com­pe­tição através da de­tecção dos mais do­tados em termos da sua pro­fis­si­o­na­li­zação. Esta de­fi­nição de­fende que «o des­porto é eli­tista por na­tu­reza», sendo por­tanto re­ser­vado uni­ca­mente aos jo­vens que de­mons­trem maior ca­pa­ci­dade como atletas.

É esta con­cepção que, na opi­nião de muitos, deve ori­entar toda a prá­tica des­por­tiva, pois é ela que pode as­se­gurar a ele­vação do valor des­por­tivo do país, ga­ran­tindo a con­quista de pó­dios in­ter­na­ci­o­nais. Esta visão do pro­blema da afir­mação in­ter­na­ci­onal do des­porto por­tu­guês, tem sido do­mi­nante ao longo de mais de ses­senta anos, com os re­sul­tados que são co­nhe­cidos. É certo que o seu atraso de­pende de um com­plexo con­junto de fac­tores, mas este é cer­ta­mente um dos mais im­por­tantes.

To­davia, o pro­blema da for­mação dos cam­peões no pre­sente, não obe­dece aos mesmos prin­cí­pios do pas­sado, exi­gindo a cri­ação de um pro­cesso pró­prio, ini­ciado muito pre­co­ce­mente (nal­gumas mo­da­li­dades de­fende-se que deve co­meçar aos três anos de idade da cri­ança), ro­deado de con­di­ções muito es­pe­cí­ficas de for­mação (ci­en­ti­fi­ca­mente de­fi­nidas) e de um sis­tema de vida pró­prio. A con­cepção do­mi­nante con­tinua a ser a mesma, talvez até mais ra­di­ca­li­zada, mas as an­tigas formas de re­la­ci­o­na­mento da «massa com a elite», ou a es­cola «al­fobre de cam­peões», ou ainda a es­tru­tu­ração da fa­mosa pi­râ­mide de pra­ti­cantes que se­lec­ci­o­nava os me­lhores através de eli­mi­na­ções su­ces­sivas em que a mai­oria é ex­cluída, dei­xaram de res­ponder às ne­ces­si­dades de for­mação dos cam­peões. A re­lação do des­porto com o pro­cesso edu­ca­tivo é, assim, to­tal­mente eli­mi­nada, pre­va­le­cendo uni­ca­mente a pre­o­cu­pação em formar cam­peões o mais pre­co­ce­mente pos­sível.

Esta pers­pec­tiva é bem es­cla­re­cida quando se de­fende que «o des­porto é eli­tista por na­tu­reza», afir­mando-se ob­jec­ti­va­mente como uma con­cepção cla­ra­mente an­ti­de­mo­crá­tica, opondo-se di­rec­ta­mente ao di­reito cons­ti­tu­ci­o­nal­mente ex­presso, de que todos devem ter acesso à prá­tica des­por­tiva, cons­ti­tuinte es­sen­cial do pro­cesso edu­ca­tivo, que só a es­cola pode re­solver. A de­cisão re­cente de en­tregar a «de­fesa» da qua­li­dade da prá­tica às fe­de­ra­ções des­por­tivas, não con­tribui para re­solver o pro­blema, na me­dida em que estas estão in­te­res­sadas em pro­curar que se re­co­nheça o valor que per­mite dis­tin­guir os in­di­ví­duos entre si, va­lo­ri­zando uni­ca­mente os mais do­tado. O exemplo mais claro desta pers­pec­tiva, en­contra-se na de­fesa da subs­ti­tuição do des­porto es­colar pelo «des­porto em idade es­colar», con­cre­ti­zado fora das es­colas e cen­trado no re­cru­ta­mento dos mais do­tados, co­lo­cando-o ao ser­viço ex­clu­sivo da for­mação dos fu­turos bons atletas.

A con­cepção do­mi­nante numa grande parte das ins­ti­tui­ções que têm in­fluência di­recta ou in­di­recta no pro­cesso do de­sen­vol­vi­mento des­por­tivo, apre­senta-se muitas vezes como con­trária aos di­reitos dos in­di­ví­duos, cla­ra­mente an­ti­de­mo­crá­tica e vi­o­lando o texto cons­ti­tu­ci­onal. Na ver­dade, é todo o pro­cesso de for­mação in­te­gral da ge­ne­ra­li­dade da po­pu­lação es­colar, de cri­ação de há­bitos de prá­tica ao longo da vida, de con­tri­buição sig­ni­fi­ca­tiva para a me­lhoria da qua­li­dade de vida das po­pu­la­ções, que é posto em causa. Com a agra­vante su­ple­mentar de im­pedir que se ex­primam com toda a pu­jança, as po­ten­ciais ca­pa­ci­dades mo­toras da po­pu­lação e a es­tru­tu­ração de uma cul­tura des­por­tiva de­mo­cra­ti­ca­mente es­tru­tu­rada, ele­mento es­sen­cial para se com­pre­ender o fe­nó­meno des­por­tivo, sob todos os seus as­pectos, e as ra­zões es­sen­ciais para se pro­mover a sua prá­tica.

Convém deixar claro que, em mo­mento algum se põe em causa a for­mação dos mais do­tados em termos des­por­tivos. Por um lado, porque têm os mesmos di­reitos dos ou­tros ci­da­dãos. Mas, por outro, porque es­tru­turam um pa­tri­mónio de enorme ri­queza, que o País não pode des­prezar, antes deve pro­mover como um pro­cesso de afir­mação in­ter­na­ci­onal. Sim­ples­mente, tal deve ser con­se­guido de uma forma que evite, por exemplo, aquilo que acaba de acon­tecer com a mais va­liosa atleta norte-ame­ri­cana da gi­nás­tica des­por­tiva.



Mais artigos de: Argumentos

Carlos de Oliveira (1921-1981) – A construção da memória e as raízes

Na primeira crónica de Aprendiz de Feiticeiro, e logo a abrir, Carlos de Oliveira (1921-1981) diz-nos da íntima ligação às palavras e do modo como a sua ressonância invade todo um edifício literário: «Digo as palavras em voz alta: - Animula vagula blandula. E as palavras, suspensas no fumo do...

«Os que não são assunto»

Era o fim de semana, estava por isso encerrada a generalidade das empresas, quando a TV nos veio contar que pelo menos uma delas, esta situada em zona da Beira Interior, não voltaria a abrir. E a televisão contou mais: que o encerramento iria provocar umas centenas de desempregados. Não é caso raro: com alguma frequência...