No País do Silêncio, de Rita Cruz

Domingos Lobo

«A re­a­li­dade é um lugar cruel», avisa-nos a au­tora, Rita Cruz

País de si­lên­cios bru­mosos, com o medo a ger­minar no campo e nas ci­dades, com ódios que se alas­tram por entre o cerco e os dramas que se urdem no seu chão mi­nado: eis o ter­ri­tório fa­bular deste ro­mance de Rita Cruz, nesta sua aus­pi­ciosa es­treia nas ta­refas de es­cre­viver.

A au­tora cons­trói, através de três his­tó­rias que se en­tre­cruzam, a cró­nica do Por­tugal fas­cista, con­ser­vador, agreste e brutal, desde os anos 1940 ao 25 de Abril de 1974.

O pri­meiro ca­pí­tulo do ro­mance, O Aci­dente, irá cons­ti­tuir-se como ele­mento ca­ta­li­sador de um dos seus dramas cen­trais, que per­cor­rerá a di­e­gese até ao ca­pí­tulo final e à re­ve­lação da iden­ti­dade da om­ni­pre­sente nar­ra­dora, que é, apenas – e este «apenas» é já em si bas­tante –, me­di­a­dora atenta de es­tó­rias que en­troncam na his­tória do sé­culo XX por­tu­guês.

Nos pri­meiros ca­pí­tulos, quando a pro­fes­sora Sílvia se ins­tala com a mãe e os fi­lhos na vila de Ara­bescos, e na re­lação que es­ta­be­lecem com os grandes se­nhores da terra, so­bre­tudo com D. Cris­tina e o filho Artur. A au­tora per­corre o fulcro cen­tral, com rara ca­pa­ci­dade des­cri­tiva, do Por­tugal sa­la­za­rento, a be­a­tice e o con­ser­va­do­rismo de uma aris­to­cracia rural, mesmo que sem grandes per­ga­mi­nhos; per­corre a es­paços os seus for­mu­lá­rios mo­rais, a ima­nente me­di­o­cri­dade, a frus­tração e o ódio que ha­bitam sob o manto diá­fano das apa­rên­cias. Rita Cruz con­segue, logo a partir do início, impor à nar­ra­tiva uma lú­cida e subtil dis­tan­ci­ação crí­tica, a at­mos­fera ri­tu­a­li­zada, os ti­ques da bur­guesia, num ro­mance que se es­tru­tura, ma­ne­jando os cortes se­quen­ciais do dis­curso e de­sor­ga­ni­zando o for­ma­lismo aris­to­té­lico, ou seja, ul­tra­pas­sando de modo tec­ni­ca­mente exem­plar, os có­digos es­tritos da nar­ra­tiva clás­sica, anu­lando as si­mi­li­tudes com o ro­man­tismo e pro­jec­tando o dis­curso nos ter­ri­tó­rios for­mais con­tem­po­râ­neos.

Nos ca­pí­tulos que se pro­longam quase até meio do ro­mance, Rita Cruz irá en­volver o leitor nos pro­blemas de adap­tação de Sílvia a um meio que lhe é, ini­ci­al­mente, hostil, às ques­tões pes­soais – a sua re­lação com o ma­rido, Edu­ardo; a es­tra­nheza com que é re­ce­bida pelas gentes de Ara­bescos, os me­xe­ricos – até à in­tro­dução no dis­curso de ou­tras per­so­na­gens que per­cor­rerão, dando-lhe outro rumo, o ro­mance, sem que a au­tora deixe de pon­tuar o pro­cesso nar­ra­tivo com a aná­lise da re­a­li­dade po­lí­tica vi­vida no país.

No ca­pí­tulo que se es­ta­be­lece entre os anos 1948/​1960, car­re­ados ou­tros ele­mentos de­fi­ni­dores, a lin­guagem torna-se mais ágil, o dis­curso ganha es­pes­sura e in­ten­ci­o­na­li­dade, trans­por­tando-nos para os es­paços in­qui­e­tantes e in­qui­ri­dores de uma re­a­li­dade trá­gica, in­ven­ta­ri­ando a sor­didez e a vi­o­lência desses dias de si­lêncio e morte.

Rita Cruz des­creve, com ve­ra­ci­dade, mi­núcia e re­a­lismo, num per­feito en­tro­sa­mento entre real e ficção, a prisão de Edu­ardo no Al­jube, as se­ví­cias so­fridas às mãos dos al­gozes, num pro­cesso des­cri­tivo ra­ra­mente trans­posto para a nossa ac­tual li­te­ra­tura, no­me­a­da­mente a que te­ma­tiza este pe­ríodo da nossa his­tória. A vi­o­lência da bar­bárie, como a au­tora as des­creve, só en­contra pa­ra­lelo nos tes­te­mu­nhos que as pró­prias ví­timas pro­du­ziram. A re­a­li­dade é um lugar cruel, avisa-nos Rita Cruz.

O fan­tás­tico que atra­vessa al­gumas pas­sa­gens do ro­mance, as pre­mo­ni­ções do padre, o as­sas­sínio de Ro­sa­linda, An­tónio a sair do coma sem me­mória dos seus dias de re­volta e medo; as fo­to­gra­fias que Edu­ardo en­viava para o Man­chester Guar­dian, tes­te­mu­nhos «que mol­davam a re­a­li­dade» de um país pobre e si­len­ciado, são pistas de um pa­tri­mónio hu­mano que este No País do Si­lêncio trans­porta, com mes­tria, para o nosso tempo. Sa­bemos do en­vol­vi­mento de Edu­ardo na re­sis­tência, nas crises aca­dé­micas dos anos ses­senta; sa­bemos das greves dos ope­rá­rios ru­rais do Alen­tejo e Ri­ba­tejo; da guerra co­lo­nial, para onde par­tirá Artur, do seu re­gresso re­vol­tado com o mundo, o seu mundo e o seu pas­sado, veio «ca­cim­bado», dirão, como tantos ou­tros e ma­tará o pobre e alei­jado An­tónio e a mu­lher deste, tal como se vin­gará do pai e do irmão mais velho, con­su­mando a tra­gédia dos Amaro.

Mas a morte não marca o fulcro cen­tral deste ro­mance, há sempre so­bre­vi­ventes de um mas­sacre, diz-nos a au­tora, ao tempo e às cir­cuns­tân­cias e, como nos ve­lhos ro­mances, Edu­ardo e Sílvia vol­tarão a estar juntos e o país res­pi­rará solto e livre ao som de Grân­dola.

Um no­tável, ines­pe­rado ro­mance. Um raro acon­te­ci­mento na nossa ac­tual li­te­ra­tura.




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