O discurso e o resto

Gustavo Carneiro

Joe Biden discursou, na semana passada, na abertura da 76.ª sessão da Assembleia-geral das Nações Unidas, pela primeira vez na qualidade de presidente dos Estados Unidos da América. Os média do costume gabaram-lhe o tom diplomático (tão mais notório se comparado com a rudeza do seu antecessor) e as referências ao clima, ao multilateralismo, à entreajuda, à liberdade, à diplomacia, às alianças, à dignidade humana. Foram poucos, porém, os que tentaram desvendar o que efectivamente disse o 46.º presidente dos EUA, tanto no que revelou como no que pretendeu ocultar.

Biden começou por chorar os 4,5 milhões de vítimas da COVID-19 e apelar a uma acção conjunta contra a doença, resultante do reconhecimento da nossa humanidade comum. Mas nada disse acerca dos bloqueios que mantém e agrava contra vários países, que dificultam (para dizer o mínimo) a milhões o acesso a vacinas, tratamentos e equipamentos médicos. E ceifam vidas.

Prometeu a abertura de uma era de diplomacia e garantiu não querer uma nova Guerra Fria, ao mesmo tempo que renova votos com a sagrada NATO e aperta o cerco à República Popular da China, criando e reactivando pactos militares na região do Indo-Pacífico: o AUKUS, com o Reino Unido e a Austrália; e o Quad, com a Índia, o Japão e uma vez mais a Austrália. Afirmou o apego a «regras e normas de longa data», tratados internacionais e medidas de controlo armamentista, ocultando os extraordinários (e crescentes) orçamentos militares norte-americanos, a renovação e modernização de arsenais nucleares, a proliferação de tropas, bases e frotas navais nos quatro cantos do mundo.

O presidente norte-americano alertou ainda para a persistente ameaça terrorista sem, por uma vez, se referir ao sustento financeiro, logístico e militar que continua a dar, na Síria, às diferentes versões do Daesh e da Al-Qaeda. Do mesmo modo que reclamou para o seu país um papel central na defesa dos valores democráticos, não explicando como tal se coaduna com o apoio concedido ao neonazismo na Ucrânia ou ao sionismo de Israel, que uma vez mais reconhece como «Estado Judeu». Ou, até, com os milhares que no seu próprio país vivem nas ruas e estão privados de cuidados de saúde.

Biden escuta um clamor por dignidade, mas aparentemente só em (algumas) terras longínquas – na Rússia e na China, em Cuba na Venezuela, na Síria e na Bielorrússia – e propõe-se a ajudar. O significado dessa ajuda é mais do que conhecido: a ingerência, a subversão, os bloqueios, as revoluções coloridas...

Não, a América não está de volta, porque sempre aqui esteve – imperialista, belicista, arrogante. Simplesmente agora sorri. O que não é, convenhamos, grande coisa...

 



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