Camarada José Saramago

Modesto Navarro

José Sa­ra­mago man­teve sempre os olhos no mundo que aju­dava a trans­formar

José Sa­ra­mago poeta, crí­tico li­te­rário, di­rector li­te­rário da Edi­to­rial Es­tú­dios Cor. Co­la­bo­ração ac­tiva no jornal A Ca­pital. 1968 e de­pois. Jo­vial, tenso e in­te­res­sado, sempre, no apoio a jo­vens es­cri­tores e jor­na­listas. Veio de onde, este homem que se fez contra todas as marés e tor­mentas da­quele tempo? Me­nino pobre, a viver a con­tra­gosto em Lisboa, longe dos avós, es­tu­dando e ga­nhando di­reito a uma pro­fissão, ser­ra­lheiro me­câ­nico, e ou­tras ex­pe­ri­ên­cias. Lendo, lendo sempre, onde havia li­vros, na bi­bli­o­teca do pa­lácio Gal­veias prin­ci­pal­mente, se­gundo as cró­nicas do tempo.

Em 1969 fez parte da Co­missão de Es­cri­tores da CDE, nas «elei­ções» do fas­cismo. Daí saiu a de­cisão de er­guer a As­so­ci­ação Por­tu­guesa de Es­cri­tores, em tra­balho in­tenso a partir do es­cri­tório de Ale­xandre Babo, perto da Ave­nida de Berna.

Nesse ano Sa­ra­mago passou a ser membro do PCP. Em 1971 era res­pon­sável por uma cé­lula do Sector In­te­lec­tual de Lisboa e no mês de Março, em que o Par­tido fazia 50 anos, ele e An­tónio Areosa Feio pro­pu­seram ao ca­ma­rada que agora vos es­creve que en­trasse para este co­lec­tivo que era e con­tinua a ser a honra maior de estar vivo e lutar, apren­dendo sempre.

Uma noite, em en­contro de ca­ma­radas e amigos, em sua casa, na Rua da Es­pe­rança, de re­pente des­co­brimos que havia uma capa de um livro co­lo­cada na porta do seu quarto. Deste mundo e do outro, que iria ser pu­bli­cado com um con­junto de cró­nicas do jornal A Ca­pital. Sim, ia sair um livro seu, con­firmou. Então al­guém tirou lá do fundo de si pró­prio um co­men­tário sobre o culto da per­so­na­li­dade no acto de pôr a capa ali, na porta. Sa­ra­mago le­vantou-se sim­ples­mente da mesa, foi co­locar-se ao lado da capa e disse: Quem dá o que tem a mais não é obri­gado.

Frase ex­tra­or­di­nária, à me­dida do tempo e dos acon­te­ci­mentos que aí vi­riam.

Com An­tónio Borges Cou­tinho, Maria Isabel Bar­reno, Fi­guei­redo Fi­lipe e muitas de­zenas de es­cri­tores e ou­tros in­te­lec­tuais, fez parte or­ga­ni­za­tiva da Co­missão de De­fesa da Li­ber­dade de Ex­pressão, que levou a PIDE a re­pres­sões e per­se­gui­ções. Acom­pa­nhou as lutas do Sin­di­cato dos Jor­na­listas e o pro­cesso de com­bate contra a des­truição de co­o­pe­ra­tivas cul­tu­rais pelo go­verno fas­cista, entre 1971 e 1972. Tinha res­pon­sa­bi­li­dade ou­tras, na vida in­tensa da re­sis­tência. Num pro­cesso de pri­sões e de in­ter­ro­ga­tó­rios o seu nome foi re­fe­rido e teve de tomar me­didas para es­capar à prisão que se podia prever.

Nesse mundo in­tenso e duro, desde 1973, as lutas am­pli­aram-se e tudo o que foi cons­truído con­correu também para o Con­gresso de Aveiro e para a for­mação de mi­li­tares que ul­tra­pas­saram a visão de luta ainda cor­po­ra­tiva e pre­pa­raram o golpe mi­litar de 25 de Abril de 1974.

Na re­vo­lução de todos os sec­tores im­por­tantes da nossa vida, nas na­ci­o­na­li­za­ções e na re­forma agrária, na cé­lula de es­cri­tores da or­ga­ni­zação re­gi­onal de Lisboa do PCP foi lan­çada a pro­posta de pedir li­vros a edi­toras, de fazer con­tactos com quem pu­desse ajudar à for­mação de bi­bli­o­tecas para en­tregar às co­o­pe­ra­tivas agrí­colas. Sempre, sempre, esta ideia clara de ligar a cul­tura às lutas dos tra­ba­lha­dores, na his­tória do PCP.

A José Sa­ra­mago coube o en­cargo de ir en­tregar uma das bi­bli­o­tecas ao Lavre, em pleno pro­cesso de uma das con­quistas mai­ores da re­vo­lução. Ficou de tal modo li­gado àquele mundo de co­ragem e ab­ne­gação que passou na al­deia e nos campos os tempos ne­ces­sá­rios à re­colha de ma­te­riais e me­mó­rias para es­crever Le­van­tado do Chão. Um ori­ginal que es­teve dois anos numa edi­tora e que não foi pu­bli­cado por ser o que era. Então, José Sa­ra­mago foi le­vantá-lo e en­tregou-o à Edi­to­rial Ca­minho, que o pu­blicou desde logo, em 1980, com a festa imensa de um salão cheio de gente na Casa do Alen­tejo, em Lisboa.

De­pois foi o que se sabe. Me­mo­rial do Con­vento, O ano da morte de Ri­cardo Reis, A Jan­gada de Pedra, His­tória do cerco de Lisboa, O evan­gelho se­gundo Jesus Cristo, Todos os nomes, A Ca­verna e tantos ou­tros li­vros, ca­dernos e obras de um cres­cendo a pulso, sempre no meio de vi­cis­si­tudes e de pro­blemas de lutas e com­bates en­fren­tados.

E sempre aquela von­tade imensa de ajudar os mais jo­vens, de formar o que não eram ter­tú­lias para passar tempo, li­te­rário que fosse. Pouco a pouco, um nome maior foi cres­cendo e o nosso le­gí­timo or­gulho foi e é es­tarmos lá, como es­ti­vemos sempre, acom­pa­nhando e im­pul­si­o­nando o que era im­pres­si­o­nante, na es­crita e na vida de quem deu sempre o que podia e afinal era obri­gado a dar mais e mais para ter um belo mo­mento, al­gures num túnel que per­corria so­zinho, numa das suas vi­a­gens já no es­tran­geiro da afir­mação e do re­co­nhe­ci­mento, a no­tícia de que lhe fora atri­buído o Prémio Nobel da Li­te­ra­tura.

Ano de 1998. Quando voltou dessa vi­agem foi ao Centro Vi­tória, do Par­tido, na Ave­nida da Li­ber­dade, em Lisboa, as­si­nalar e fes­tejar esse prémio, e daí foi di­rec­ta­mente à Praça do Co­mércio, dar a sua so­li­da­ri­e­dade mi­li­tante a muitos tra­ba­lha­dores em luta por di­reitos de tra­balho e de uma vida digna.

De­pois foi sempre o ca­ma­rada José Sa­ra­mago dos com­bates aqui e lá fora, com os olhos no mundo que aju­dava a trans­formar e na me­mória desse me­nino que veio de Azi­nhaga, ainda cri­ança, e honrou o ca­minho maior de ser um in­te­lec­tual de Abril e mi­li­tante co­mu­nista.

O PCP vai co­me­morar o Cen­te­nário de José Sa­ra­mago ao longo do ano 2022 com um pro­grama que será apre­sen­tado no pró­ximo dia 30 de Ou­tubro, pro­cu­rando as­si­nalar as vá­rias di­men­sões da sua in­ter­venção.




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