Que desporto temos? Que desporto queremos?

A. Melo de Carvalho

A aposta no alto ren­di­mento não pode so­brepor-se à di­fusão do des­porto por toda a po­pu­lação

Lusa

A con­cepção do des­porto de ren­di­mento que he­ge­mo­ni­ca­mente de­ter­mina o cres­ci­mento desta ac­ti­vi­dade em Por­tugal desde sempre, tem pro­vo­cado efeitos de­sas­trosos na sua di­fusão. A origem prin­cipal da­quilo que in­ter­na­ci­o­nal­mente se de­signa por drop out, ou seja, o aban­dono da prá­tica por uma grande parte da­queles que a ex­pe­ri­men­taram, cons­titui uma dessas con­sequên­cias mais dra­má­ticas, na me­dida em que não só di­minui subs­tan­ci­al­mente o nú­mero de pra­ti­cantes, como faz deles maus pro­pa­gan­distas da sua di­fusão.

Di­rec­ta­mente re­la­ci­o­nado com este fe­nó­meno, deve re­ferir-se o ex­tre­ma­mente ne­ga­tivo pro­cesso da es­pe­ci­a­li­zação pre­coce, prá­tica muito fre­quente que pro­cura formar cam­peões à força. Con­fun­dindo a ne­ces­si­dade da prá­tica pre­coce de todas as cri­anças com a es­pe­ci­a­li­zação de um grupo se­lec­ci­o­nado desde as idades mais novas numa dada mo­da­li­dade des­por­tiva, porque têm mais jeito, e em lugar de ga­rantir a sua for­mação mul­ti­la­teral através do jogo e de múl­ti­plas prá­ticas, muitos são aqueles adultos que im­põem uma for­mação que, como está com­pro­vado, só pre­ju­dica o de­sen­vol­vi­mento do in­di­víduo em cres­ci­mento, como também o im­pede de al­cançar a má­xima ex­pressão das suas ca­pa­ci­dades no fu­turo.

A adopção do pro­cesso de or­ga­ni­zação da pi­râ­mide da prá­tica, vi­sando de­tectar os mais do­tados através de su­ces­sivas etapas de se­lecção, eli­mi­nando aqueles que vão sendo ven­cidos, agrava a si­tu­ação na me­dida em que muitos dos se­lec­ci­o­nados são, de facto, os pre­coces, ou seja, aqueles que têm um pro­cesso de ma­tu­ração mais avan­çado do que a mai­oria, sendo por isso, falsos do­tados, como se ve­ri­fica quando ter­minam a sua ado­les­cência.

Con­tudo, mais grave ainda, acon­tece que um bom nú­mero dos ver­da­deiros do­tados, com frequência apre­sentam um pro­cesso ma­tu­ra­ci­onal mais lento, que só se ex­prime em pleno nos anos fi­nais desta fase da sua vida. Estes, com uma frequência que se des­co­nhece, acabam por in­te­grar o vasto nú­mero dos eli­mi­nados da es­tru­tura da pi­râ­mide, na me­dida em que as suas qua­li­dades ainda estão longe de se ex­primir em pleno, du­rante a sua in­fância e pré-ado­les­cência.

Um pa­ra­doxo a re­solver

O pa­ra­doxo é evi­dente: pre­o­cu­pados ob­ses­si­va­mente com a vi­tória, os adultos forçam as cri­anças a al­cançá-la, o que, como bem se sabe, pouco lhes in­te­ressa. Mas as exi­gên­cias da pre­pa­ração a que são sub­me­tidas, não só os des­gostam e afastam, como põem em causa o seu de­sen­vol­vi­mento e a ex­pressão de ca­pa­ci­dades que, no mo­mento pró­prio, pos­si­bi­li­ta­riam a vi­tória. Isto acon­tece porque num mo­mento cru­cial do de­sen­vol­vi­mento, so­mente certas ca­pa­ci­dades são es­ti­mu­ladas, fi­xando uni­ca­mente um único tipo de gestos téc­nicos, en­quanto as ou­tras são ig­no­radas, li­mi­tando for­te­mente a cri­a­ti­vi­dade do pra­ti­cante no fu­turo.

No pre­sente, nos países des­por­ti­va­mente mais evo­luídos existe uma es­tru­tura pró­pria capaz de pre­en­cher todas as ne­ces­si­dades da mo­derna for­mação para e no alto ren­di­mento, in­te­grando as vá­rias va­lên­cias al­ta­mente es­pe­ci­a­li­zadas, con­si­de­radas como es­sen­ciais para a ex­pressão má­xima das ca­pa­ci­dades do atleta. Essa es­tru­tura in­tegra cen­tros es­pe­ci­a­li­zados, po­dendo estar se­di­ados numa es­cola par­ti­cu­lar­mente do­tada em con­di­ções de tra­balho para os es­pe­ci­a­listas, mas que não deve ser in­te­grada no des­porto es­colar, mas sim na es­tru­tura de for­mação es­pe­cial dos jo­vens atletas se­lec­ci­o­nados, cuja res­pon­sa­bi­li­dade de gestão deve caber às fe­de­ra­ções des­por­tivas.

É im­por­tante que se com­pre­enda que o pro­cesso de de­mo­cra­ti­zação da prá­tica do des­porto também passa por aqui, não só porque os mais do­tados têm os mesmos di­reitos de for­mação, mas também porque a pre­sença de Por­tugal nas grandes com­pe­ti­ções in­ter­na­ci­o­nais é uma exi­gência im­posta pelo valor pres­ti­gi­ante que o des­porto as­sume no pre­sente. To­davia, ao con­trário da­quilo que acon­tece em Por­tugal, esta pers­pec­tiva não pode so­brepor-se ao es­forço em di­fundir a prá­tica des­por­tiva por toda a po­pu­lação, de acordo com o di­reito ao des­porto con­sig­nado na Cons­ti­tuição da Re­pú­blica.




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