A fila e a noite

Correia da Fonseca

Foi a CMTV que trans­mitiu aquelas ima­gens de ci­da­dãos em pé, dis­postos a passar a noite ao re­lento: ima­gens pe­nosas de ver, si­tu­ação de­certo muito pe­nosa de viver. Com uma ex­pli­cação, na­tu­ral­mente, como tudo na vida: eram, em fila à porta de um centro de saúde que ainda não abrira, ci­da­dãos e ci­dadãs que por in­vo­lun­tária ironia são de­sig­nados com a pa­lavra «be­ne­fi­ciá­rios». Em prin­cípio se­riam gente do­ente ou, no mí­nimo, ado­en­tada: quem está de per­feita saúde di­fi­cil­mente se dispõe a ir para uma fila di­ante de uma porta que ainda se man­terá fe­chada du­rante horas. É esse, con­tudo, o preço que todos aqueles «be­ne­fi­ciá­rios» acei­tavam pagar, até porque nem todos, longe disso, de­certo terão re­cursos que per­mitam o luxo de re­correr à me­di­cina pri­vada, seus pro­lon­ga­mentos e anexos. E du­rante o breve tempo em que a câ­mara se de­morou, ainda foi pos­sível ao te­les­pec­tador aper­ceber-se de que estar na­quela fila era pe­noso, even­tu­al­mente in­sa­lubre, e de que, se todos ou quase todos os que ali es­tavam li­te­ral­mente en­fi­lei­rados es­tavam do­entes ou ado­en­tados, di­fi­cil­mente dali sai­riam em me­lhor con­dição por muito que o ar livre faça bem à saúde.

Os muitos e os poucos

A questão em ver­dade sus­ci­tada pela imagem não teria tanto a ver, con­tudo, com a in­co­mo­di­dade ou até a pe­ri­go­si­dade de uma es­pera ao ar livre noc­turno quanto com a in­vo­lun­tária ilus­tração do modo são tra­tados os tais be­ne­fi­ciá­rios. Es­pe­remos que da­quela fila em de­mo­rada es­pera a pé firme (e que de­sa­gra­dável as­so­ci­ação de ideias aquela imagem pode sus­citar!) não te­nham re­sul­tado muitas cons­ti­pa­ções, ne­nhuma gripe ou pneu­monia, mas o que mais in­qui­e­tará não será esse risco mas sim o tes­te­munho in­vo­lun­tário que a te­le­visão nos dava acerca do de­sem­ba­raço com que são tra­tados os cha­mados be­ne­fi­ciá­rios do SNS Ser­viço Na­ci­onal de Saúde. Ob­jectar-se-á por­ven­tura que aqueles do­entes ou equi­pa­rados têm ali, por de­trás da­quela porta ainda fe­chada, cui­dados mé­dicos que cus­ta­riam os olhos da cara se re­cor­ressem ao sector pri­vado. Mas a questão cen­tral é outra: é a de se saber se esses be­ne­fi­ciá­rios não têm di­reito a formas ele­men­tares de res­peito e se uma dessas formas não seria a de não os obrigar a uma es­pera noc­turna di­ante de uma porta ainda fe­chada. Vozes res­pon­sá­veis po­derão alegar que os do­entes são muitos e os re­cursos do SNS serão sempre poucos, ou­tros ale­garão que há quem vá ao mé­dico do SNS por dá cá aquela palha e que esse abuso in­vi­a­bi­liza me­lho­rias de vária ordem, in­cluindo quanto ao aco­lhi­mento. Todos ar­gu­mentos deste tipo ou apa­ren­tados es­barram contra a imagem da­quela fila de gente di­ante de uma porta fe­chada. Gente de­certo com queixas por do­ença ou sus­peita de do­ença. A en­frentar a noite a horas em que me­lhor lhe sa­beria o calor da cama.




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