Uma transição energética ao serviço do capital

Miguel Viegas

A so­lução da crise cli­má­tica e da tran­sição ener­gé­tica não re­side no ca­pi­ta­lismo

En­quanto as idí­licas con­sequên­cias da li­be­ra­li­zação do sector ener­gé­tico nos en­tram pelos bolsos adentro, para gáudio dos ac­ci­o­nistas pri­vados das em­presas pri­va­ti­zadas sob a ba­tuta da po­lí­tica de di­reita, ainda há na praça quem queira con­vencer-nos de que será o mer­cado a salvar o pla­neta e a im­pedir o co­lapso imi­nente dos ecos­sis­temas.

Pa­ra­do­xal­mente, o velho carvão, ver­da­deiro ícone da re­vo­lução in­dus­trial dos sé­culos XVIII e XIX, re­nasceu das cinzas em pleno sé­culo XXI, apesar de ser com­pro­va­da­mente a fonte mais po­lui­dora e mais pre­ju­di­cial à saúde de entre todas as exis­tentes. O en­cer­ra­mento do pro­grama nu­clear alemão e os preços de saldo das li­cenças de emissão de car­bono assim o per­mi­tiram. É o mer­cado, dirão al­guns...

Hoje, não sendo mais pos­sível omitir a re­a­li­dade, o en­cer­ra­mento das cen­trais a carvão está na ordem do dia. A so­lução en­con­trada, bem a con­tento dos ac­ci­o­nistas, foi a con­versão das cen­trais a carvão para pel­lets, ofe­re­cendo preços cho­rudos pela energia pro­du­zida, agora con­si­de­rada re­no­vável.

Con­tudo, esta so­lução tem sido con­tes­tada pela co­mu­ni­dade ci­en­tí­fica, que cri­tica esta queima em larga es­cala de ma­te­rial le­nhoso. As contas são re­la­ti­va­mente fá­ceis de fazer. Para manter a mesma pro­dução ener­gé­tica, a bi­o­massa re­si­dual nunca será su­fi­ci­ente. Mais, o ritmo da queima será sempre su­pe­rior ao cres­ci­mento da flo­resta. Tudo so­mado, a re­con­versão para pel­lets das cen­trais a carvão exis­tentes na Eu­ropa le­vará à di­zi­mação da flo­resta de pinho.

Mais uma fi­leira com­pro­me­tida

A pro­cura mun­dial de pel­lets tem vindo a au­mentar. As im­por­ta­ções do Ca­nadá e dos Es­tados Unidos, tra­di­ci­o­nais for­ne­ce­dores da Eu­ropa, não chegam para as en­co­mendas. Em Por­tugal, as fá­bricas de pel­lets nascem como co­gu­melos, muitas delas apoi­adas com fundos da União Eu­ro­peia. Cen­trais de bi­o­massa, igual­mente fi­nan­ci­adas pela UE e pen­sadas para dar sus­ten­ta­bi­li­dade à lim­peza das flo­restas, não con­se­guem ma­téria-prima para a sua la­bo­ração.

A As­so­ci­ação das In­dús­trias de Ma­deira e Mo­bi­liário de Por­tugal (AIMMP) veio re­cen­te­mente alertar para a falta de pinho em Por­tugal, que ameaça a vi­a­bi­li­dade de muitas em­presas, e cri­ticar a es­tra­tégia er­rada de es­coar pinho em pro­dutos de baixo valor acres­cen­tado. Pu­dera, de­pois de uma dé­cada de cres­ci­mento ex­po­nen­cial, somos já o quinto ex­por­tador da Eu­ropa em pel­lets e um dos prin­ci­pais for­ne­ce­dores da Drax in­glesa, onde é con­su­mida a nossa flo­resta.

Com esta ex­por­tação de pel­lets, o Reino Unido pro­cura cum­prir com as metas de pro­dução de energia re­no­vável à custa da flo­resta por­tu­guesa. Por­tugal perde assim uma área im­por­tante como re­tentor de CO2 da at­mos­fera e com­pro­mete a sua fi­leira de pinho. In­fe­liz­mente, nada tem sido feito pelo Go­verno de Por­tugal para evitar tal perda.

Com este exemplo, con­firma-se duas coisas. A pri­meira é que a so­lução da crise cli­má­tica e da tran­sição ener­gé­tica não re­side no ca­pi­ta­lismo.

A se­gunda é que só uma rup­tura com a ac­tual po­lí­tica de di­reita po­de­remos re­tirar Por­tugal da sua si­tu­ação de total su­bor­di­nação po­lí­tica e eco­nó­mica pe­rante as grandes mul­ti­na­ci­o­nais da Eu­ropa e do mundo.




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