Travar o empobrecimento da Cultura e a legalização da precariedade

No dia 3 de No­vembro, frente à As­sem­bleia da Re­pú­blica, or­ga­ni­za­ções sin­di­cais e sec­to­riais re­cla­maram a de­fi­nição e cons­trução de um ser­viço pú­blico de cul­tura em todo o ter­ri­tório na­ci­onal, as­sente num plano de fi­nan­ci­a­mento plu­ri­a­nual e com pa­tamar mí­nimo de 1% do Or­ça­mento do Es­tado (OE). No OE para 2022, chum­bado no pas­sado dia 27, es­tavam de­di­cados à Cul­tura 0,35 por cento, ou 0,25 por cento se re­ti­rarmos a verba des­ti­nada à co­mu­ni­cação so­cial e ao au­di­o­vi­sual.

A Cul­tura tem de viver

Esta foi uma das rei­vin­di­ca­ções que se fi­zeram ouvir em Lisboa, num pro­testo pro­mo­vido pelo Sin­di­cato dos Tra­ba­lha­dores de Es­pec­tá­culos, do Au­di­o­vi­sual e dos Mú­sicos (CENA-STE), União de Sin­di­catos de Lisboa, Ma­ni­festo em De­fesa da Cul­tura, Fe­de­ração Na­ci­onal de Sin­di­catos de Tra­ba­lha­dores em Fun­ções Pú­blicas e So­ciais e Sin­di­cato dos Tra­ba­lha­dores de Ar­que­o­logia.

«Man­tendo a odiosa fas­quia de 0,25 por cento, tra­tava-se de mais um or­ça­mento de atraso, de em­po­bre­ci­mento, de in­di­gência e de des­prezo pela cul­tura, pelos seus tra­ba­lha­dores e pelo di­reito de todos à cri­ação e fruição», lê-se num co­mu­ni­cado, também subs­crito pela As­so­ci­ação para as Artes Per­for­ma­tivas em Por­tugal, Acção Co­o­pe­ra­ti­vista, As­so­ci­ação Pelo Do­cu­men­tário, Do­cLisboa, Monstra, Porto/​Pos/​Doc, Os Fi­lhos de Lu­mière – As­so­ci­ação Cul­tural, Queer Lisboa, Curtas de Vila do Conde, Agência da Curta Me­tragem, As­so­ci­ação de Pro­du­tores do Norte e Em­pre­sá­rios in­de­pen­dentes do Au­di­o­vi­sual, Lua Cheia, Te­atro do Vão e Ma­rina Na­bais Dança – As­so­ci­ação Cul­tural.

Em unís­sono lem­bram que o ac­tual Go­verno do PS «não quer as­sumir a sua res­pon­sa­bi­li­dade por uma po­lí­tica de de­mo­cra­ti­zação, de in­ves­ti­mento ro­busto, de cri­ação de con­di­ções de es­ta­bi­li­dade e de tra­balho com di­reitos, de res­peito pelas artes, pela sua li­ber­dade e di­ver­si­dade, e de cons­trução do ser­viço pú­blico de Cul­tura a que todos os ci­da­dãos têm di­reito, res­pon­sa­bi­li­dade que a Cons­ti­tuição [da Re­pú­blica Por­tu­guesa] lhe atribui».

Por outro lado, «a si­tu­ação pan­dé­mica expôs de forma dra­má­tica as fra­gi­li­dades, a in­cúria e os des­norte da po­lí­tica e do rumo de dé­cadas». «A luta por uma po­lí­tica de­mo­crá­tica na Cul­tura atingiu na úl­tima dé­cada um pa­tamar nunca antes visto em Por­tugal, agitou as con­sequên­cias e mo­bi­lizou a so­ci­e­dade. Mas tem en­con­trado, por parte dos go­vernos, uma re­cusa em avançar para pa­ta­mares de de­sen­vol­vi­mento mais exi­gentes e com com­pro­missos só­lidos e sé­rios», acres­centam as or­ga­ni­za­ções sin­di­cais e sec­to­riais.

So­li­da­ri­e­dade do PCP
Esta acção de pro­testo – onde es­ti­veram muitas de­zenas de pro­fis­si­o­nais da Cul­tura – contou com a pre­sença da de­pu­tada co­mu­nista Ana Mes­quita, que, em nome do PCP, so­li­da­rizou-se com a luta em de­fesa das Artes e Cul­tura e afirmou o com­pro­misso de com­bater o sub­fi­nan­ci­a­mento e a pre­ca­ri­e­dade.

Antes, no dia em que foi vo­tado o OE para 2022 na ge­ne­ra­li­dade, a de­pu­tada frisou que a exis­tência de um ser­viço pú­blico de Cul­tura, de­vi­da­mente es­tru­tu­rada em todo o ter­ri­tório na­ci­onal, é «im­pres­cin­dível» à de­mo­cracia e é «um di­reito de todos». «O Es­tado, en­quanto ga­rante da livre cri­ação ar­tís­tica e da fruição cul­tural, tem de as­se­gurar uma forte com­po­nente de fi­nan­ci­a­mento pú­blico», de forma a ga­rantir «a in­de­pen­dência e a au­to­nomia de cri­ação» dos «in­te­resses pri­vados ou das ló­gicas es­tritas de mer­cado», e, além disso, «en­carar a cul­tura como tra­balho com di­reitos», de­fendeu.

Ana Mes­quita pro­nun­ciou-se ainda sobre o Es­ta­tuto dos Pro­fis­si­o­nais da Área da Cul­tura – uma rei­vin­di­cação do sector com pelo menos duas dé­cadas – que apre­senta «normas pi­ores do que as do Có­digo do Tra­balho» e «nor­ma­liza a pre­ca­ri­e­dade, as­se­gu­rando que con­tinua e vai con­ti­nuar a ser mais ba­rato con­tratar com vín­culos pre­cá­rios». Re­clamou, por isso: «con­tratos de tra­balho com di­reitos para todos; au­mentar sa­lá­rios e ca­chés; ga­rantir car­reiras con­tri­bu­tivas es­tá­veis; re­gular os ho­rá­rios de tra­balho».

A de­pu­tada avançou ainda com ou­tras me­didas, como atri­buir 1% do OE para a Cul­tura; ga­rantir a con­tra­tação de todos os tra­ba­lha­dores ne­ces­sá­rios – pelo menos 250 para a Di­recção Geral do Pa­tri­mónio Cul­tural e para as di­rec­ções re­gi­o­nais de Cul­tura; atri­buir 212 mi­lhões de euros para in­ter­ven­ções de ur­gência no pa­tri­mónio cul­tural; a in­te­gral as­sumpção das des­pesas de fun­ci­o­na­mento da Ci­ne­ma­teca e dos apoios à cri­ação ci­ne­ma­to­grá­fica; al­te­ração pro­funda do re­gime de atri­buição dos apoios às artes.

Le­ga­lizar a pre­ca­ri­e­dade
Também o CENA-STE con­si­derou o Es­ta­tuto um «es­tra­ta­gema para mas­carar a ir­re­le­vância do peso or­ça­mental pro­posto para o sector». «A le­gis­lação como a que se pre­tende impor visa apenas le­ga­lizar e per­pe­tuar a pre­ca­ri­e­dade e blo­queia ca­mi­nhos que possam de facto elevar os di­reitos e a pro­tecção so­cial dos tra­ba­lha­dores das Artes de Es­pec­tá­culo, do Au­di­o­vi­sual e dos Mú­sicos», acentua o sin­di­cato em co­mu­ni­cado, no dia (21 de Ou­tubro) em que o es­ta­tuto foi apro­vado em Con­selho de Mi­nis­tros.

Mantém-se por isso a exi­gência de um Es­ta­tuto que cumpra a au­to­ri­zação le­gis­la­tiva que deu início ao seu pro­cesso de cri­ação – de com­bate à pre­ca­ri­e­dade e não a sua pro­moção; que re­vogue a lei 4/​2008 e pro­mova a con­tra­tação e os vín­culos es­tá­veis de tra­balho; que pro­mova a li­ber­dade de cri­ação e fruição cul­tural a todos, e não um que im­peça o acesso às pro­fis­sões cul­tu­rais; que ga­ranta pro­tecção so­cial, pro­mo­vendo o acesso dos tra­ba­lha­dores à sua car­reira con­tri­bu­tiva por via da con­tra­tação e não pelo re­curso a mo­delos van­ta­josos (para as em­presas) de pre­ca­ri­e­dade; que re­co­nheça o que é di­fe­rente e es­pe­cí­fico, re­gu­lando essas es­pe­ci­fi­ci­dades a partir dos di­reitos la­bo­rais já exis­tentes; que com­pro­meta as ins­ti­tui­ções cul­tu­rais pú­blicas e todas as pri­vadas que gozem de apoios pú­blicos a cum­prirem as re­gras claras de con­tra­tação dos pro­fis­si­o­nais da área da cul­tura, re­co­nhe­cendo a sua na­tu­reza de tra­balho su­bor­di­nado. Para isso é es­sen­cial o re­forço do fi­nan­ci­a­mento destas es­tru­turas.

 

Lutar para exigir

Tendo como ho­ri­zonte a re­a­li­zação de elei­ções le­gis­la­tivas an­te­ci­padas, as or­ga­ni­za­ções re­pre­sen­ta­tivas do tra­balho cul­tural afirmam a de­ter­mi­nação em lutar para exigir:

1. O cum­pri­mento da Cons­ti­tuição da Re­pú­blica, com a im­ple­men­tação dos meios ne­ces­sá­rios ao livre acesso de todos à cri­ação e fruição cul­tu­rais;

2. De­fi­nição e cons­trução de um ser­viço pú­blico de Cul­tura em todo o ter­ri­tório na­ci­onal, as­sente num plano de fi­nan­ci­a­mento plu­ri­a­nual e com pa­tamar mí­nimo de 1% do Or­ça­mento do Es­tado(OE). Fim das ca­ti­va­ções e plena exe­cução do or­ça­men­tado;

3. De­fesa do tra­balho com di­reitos, de­fesa do em­prego es­tável, com­bate in­tran­si­gente à pre­ca­ri­e­dade e ao tra­balho não-re­mu­ne­rado;

4. Apoio à cri­ação ar­tís­tica, em todos os seus do­mí­nios, na cri­ação, pro­dução, apre­sen­tação, di­vul­gação, es­tudo e di­fusão da pro­dução na­ci­onal. Au­mento ro­busto do fi­nan­ci­a­mento pú­blico, em apoios di­rectos à cri­ação, na dis­po­ni­bi­li­zação de cen­tros de pro­jecto e cri­ação em todo o ter­ri­tório, e na en­co­menda, aqui­sição e di­fusão de obras.
Im­ple­men­tação de um mo­delo de apoios di­rectos à cri­ação não-con­cursal, as­sente em cri­té­rios ob­jec­tivos, no res­peito pela livre cri­ação, or­ga­ni­zação e gestão do tra­balho ar­tís­tico e capaz de apoiar todos os pro­jectos ele­gí­veis. Cri­ação de or­ques­tras na­ci­o­nais des­cen­tra­li­zadas;

5. Ins­crição no OE da to­ta­li­dade do fi­nan­ci­a­mento pú­blico à pro­dução ci­ne­ma­to­grá­fica e fim da in­ge­rência das ope­ra­doras de dis­tri­buição e di­fusão por cabo da po­lí­tica pú­blica;

6. De­fesa do pa­tri­mónio cul­tural, com os meios fi­nan­ceiros, hu­manos e téc­nicos ne­ces­sá­rios. De­fesa do pa­tri­mónio ame­a­çado, re­cusa da sua pri­va­ti­zação e pro­moção do acesso e usu­fruto por todos;

7. De­fesa e pre­ser­vação da do­cu­men­tação ar­qui­vís­tica e pro­moção do livre acesso dos ci­da­dãos à in­for­mação pú­blica. Pro­moção da lei­tura e da li­te­racia. Apoio pú­blico às redes de bi­bli­o­tecas;

8.Alar­ga­mento da com­po­nente ar­tís­tica nos cur­rí­culos da es­co­la­ri­dade obri­ga­tória. Cons­trução de uma rede pú­blica na­ci­onal de en­sino ar­tís­tico. Pro­moção da cons­trução de uma rede de for­mação ar­tís­tica ao longo da vida;

9.Apoios às co­lec­ti­vi­dades po­pu­lares, en­quanto pro­mo­toras de de­sen­vol­vi­mento ar­tís­tico e cul­tural das po­pu­la­ções, em todo o ter­ri­tório;

10. Plano de emer­gência para as si­tu­a­ções de ca­rência eco­nó­mica cau­sadas pela pan­demia. Plano de apoio à re­so­lução das dí­vidas à Se­gu­rança So­cial;

11.Reins­ti­tuição dos ins­ti­tutos pú­blicos de acordo com as es­pe­ci­fi­ci­dades das po­lí­ticas para a arte con­tem­po­rânea, o livro, o pa­tri­mónio cul­tural, o res­tauro e a con­ser­vação, as bi­bli­o­tecas e os ar­quivos. Reins­ti­tuição do Ob­ser­va­tório das Ac­ti­vi­dades Cul­tu­rais e do re­porte das ac­ti­vi­dades cul­tu­rais.