Onde fica a Constituição?

Ângelo Alves

A «ope­ração mi­ríade», que en­volve a ale­gada par­ti­ci­pação de mi­li­tares por­tu­gueses em missão da ONU na Re­pú­blica Centro Afri­cana em trá­ficos ile­gais e bran­que­a­mento de ca­pi­tais é grave e deve ser es­cla­re­cida ca­bal­mente. Está em causa a imagem, au­to­ri­dade e pres­tígio das forças ar­madas por­tu­guesas.

Este está longe de ser o pri­meiro caso em que forças ar­madas de di­versos países, em mis­sões ex­ternas da ONU ou de ou­tras en­ti­dades, se en­volvem em ac­ti­vi­dades cri­mi­nosas. Ao longo de dé­cadas, são inú­meros os exem­plos de casos se­me­lhantes, e isso não pode ser dis­so­ciado do en­qua­dra­mento de vá­rias destas mis­sões, de­ter­mi­nadas na mai­oria dos casos por ob­jec­tivos de do­mínio im­pe­ri­a­lista, e muitas vezes de na­tu­reza ne­o­co­lo­ni­a­lista.

Um País como Por­tugal, com a di­mensão, his­tória e en­qua­dra­mento cons­ti­tu­ci­onal que co­nhe­cemos, de­veria re­jeitar e com­bater as po­lí­ticas ne­o­co­lo­ni­a­listas do im­pe­ri­a­lismo. Por aquilo que re­pre­sentam de ne­gação de di­reitos ao de­sen­vol­vi­mento e so­be­rania, e pelo pe­rigo de Por­tugal ficar amar­rado a in­te­resses e po­lí­ticas que não be­ne­fi­ciam o in­te­resse do País.

E sobre esta questão surgem-nos duas re­fle­xões: a pri­meira é que uma das ques­tões mais graves re­la­ci­o­nadas com a «ope­ração mi­ríade» passou quase des­per­ce­bida – o facto de, na pri­o­ri­dade de in­for­mação, os ór­gãos de so­be­rania na­ci­onal serem pre­te­ridos em favor de uma en­ti­dade es­tran­geira, neste caso a ONU, sob a jus­ti­fi­cação de que as nossas forças in­te­gravam uma missão in­te­grada dessa Or­ga­ni­zação. Es­tra­nha­mente, as «ra­zões ju­rí­dicas» que im­pe­diram os ór­gãos de so­be­rania de co­nhecer a exis­tência de uma in­ves­ti­gação desta gra­vi­dade não se apli­caram no caso da in­for­mação à ONU. A se­gunda é que a se­re­ni­dade com que o Pre­si­dente da Re­pú­blica pa­rece aceitar este facto, sus­cita muitas dú­vidas e per­guntas. A res­posta pode estar numa frase do Pre­si­dente pro­fe­rida na par­tida de mais um Ba­ta­lhão para a Re­pú­blica Centro Afri­cana. Re­fe­rindo-se à missão dos mi­li­tares por­tu­gueses, e abor­dando a questão das mi­gra­ções, Mar­celo Re­belo de Sousa afirmou que «as fron­teiras de Por­tugal co­meçam em África». Como a His­tória já nos de­mons­trou e de­monstra, o facto de Por­tugal se as­so­ciar a po­lí­ticas que visam a so­be­rania de ou­tros países tem sempre um re­verso. O caso da «ope­ração mi­ríade» com­prova-o mais uma vez, e isso é grave, pois está em causa a so­be­rania na­ci­onal e a Cons­ti­tuição da Re­pú­blica.




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