Fuga de Caxias foi há 60 anos

Exemplo de coragem para a luta do nosso tempo

O PCP evocou em Lisboa, no dia 4, a au­da­ciosa fuga que pre­ci­sa­mente seis dé­cadas antes, em plena luz do dia e pe­rante o olhar ató­nito de guardas pri­si­o­nais e agentes da GNR, de­volveu à li­ber­dade e à luta an­ti­fas­cista oito des­ta­cados mi­li­tantes co­mu­nistas. As­si­na­lando a efe­mé­ride, Je­ró­nimo de Sousa ga­rantiu que «se­gui­remos em frente, com a luta e com a co­ragem que nunca faltou às ge­ra­ções de co­mu­nistas que nos pre­ce­deram».

A fuga de Ca­xias de­volveu às fi­leiras da luta clan­des­tina oito des­ta­cados mi­li­tantes co­mu­nistas

O salão da Casa do Alen­tejo en­cheu-se para a co­me­mo­ração dos 60 anos da fuga de Ca­xias. Ali es­ti­veram, na tarde de sá­bado, muitos que uma vez mais as­si­na­lavam aquele mo­mento alto da re­sis­tência ao fas­cismo e de luta pela li­ber­dade, e ou­tros que dele ou­viram falar por­me­no­ri­za­da­mente pela pri­meira vez na­quela oca­sião.

A emoção, essa, foi unâ­nime, a julgar pelo modo como a sessão de­correu: da ca­lo­rosa sau­dação à ac­tu­ação do Coro Lopes-Graça (que a al­gumas He­róicas acres­centou o Hino dos Presos de Ca­xias) ao en­tu­si­asmo como foi acom­pa­nhado o tes­te­munho de Do­mingos Abrantes, um dos par­ti­ci­pantes na fuga; da so­le­ni­dade da evo­cação, na qual par­ti­ci­param di­versas en­ti­dades pú­blicas e or­ga­ni­za­ções ao en­tu­si­asmo com que foram aco­lhidas as pa­la­vras de Je­ró­nimo de Sousa, que trans­portou para o pre­sente, e para os exal­tantes com­bates que os co­mu­nistas têm à sua frente, a he­roica e exal­tante his­tória cen­te­nária do Par­tido.

No átrio, uma ex­po­sição dava a co­nhecer os vá­rios mo­mentos da fuga, a sua longa pre­pa­ração, o con­texto em que se re­a­lizou, os seus pro­ta­go­nistas. De tudo isto fa­laria Do­mingos Abrantes, vi­si­vel­mente emo­ci­o­nado quando evocou os seus ca­ma­radas, já fa­le­cidos: An­tónio Ger­vásio, Fran­cisco Mi­guel, Gui­lherme da Costa Car­valho, Ilídio Es­teves, José Magro e An­tónio Te­reso. Este úl­timo me­receu uma es­pe­cial re­fe­rência, pelo papel de­ter­mi­nante que lhe coube na fuga e pela du­reza do que teve de en­frentar quando fingiu «ra­char», no­me­a­da­mente o des­prezo dos res­tantes presos, seus ca­ma­radas. O oi­tavo par­ti­ci­pante, Ro­lando Ver­dial, aca­baria por trair o Par­tido e a luta a que de­di­cara anos da sua vida.

Após re­alçar que todas as fugas das pri­sões do fas­cismo foram im­por­tantes por de­vol­verem à luta an­ti­fas­cista di­ri­gentes, qua­dros e mi­li­tantes do Par­tido, Do­mingos Abrantes enu­merou al­gumas sin­gu­la­ri­dades desta, que a tornam ímpar: foi toda pre­pa­rada e exe­cu­tada do in­te­rior da ca­deia e re­a­lizou-se pe­rante o olhar de guardas for­te­mente ar­mados e em plena luz do dia. Porém, e apesar de ter sido cui­da­do­sa­mente pre­pa­rada, muitas dú­vidas per­ma­ne­ceram até ao pró­prio mo­mento da fuga: seria o carro efec­ti­va­mente blin­dado? Aguen­taria o em­bate com o portão? Como re­a­gi­riam os guardas?

As res­postas re­gista-as a his­tória.

Na pri­meira linha da re­sis­tência

Je­ró­nimo de Sousa co­meçou a sua in­ter­venção lem­brando que «fugir das ca­deias fas­cistas era, para os co­mu­nistas, uma ta­refa, de­ter­mi­nada pela von­tade de re­cu­perar o seu posto na luta clan­des­tina e servir os tra­ba­lha­dores e o povo por­tu­guês». Foi pre­ci­sa­mente isso que fi­zeram os par­ti­ci­pantes na Fuga de Ca­xias, que juntos pas­saram 90 anos nas ca­deias fas­cistas. A epo­peia que pro­ta­go­ni­zaram foi «uma ex­tra­or­di­nária vi­tória do nosso Par­tido, da re­sis­tência, do nosso povo, sobre o fas­cismo, mais um rombo na mu­ralha de um re­gime odioso», de­pois de no início de 1960 outra fuga co­lec­tiva, de Pe­niche, ter li­ber­tado dez des­ta­cados mi­li­tantes e di­ri­gentes co­mu­nistas.

Ambas, lem­brou o Se­cre­tário-geral, foram de­ter­mi­nantes para «as­se­gurar um no­tável re­forço do Par­tido» e para o êxito de grandes lutas de massas re­a­li­zadas pouco de­pois, como a jor­nada do 1.º de Maio de 1962 e a con­quista das 8 horas de tra­balho nos campos do Sul, nas quais es­ti­veram en­vol­vidos muitos dos que par­ti­ci­param nas duas fugas. Também o VI Con­gresso do Par­tido, que aprovou o Pro­grama para a Re­vo­lução De­mo­crá­tica e Na­ci­onal, re­sulta do re­forço da or­ga­ni­zação par­ti­dária e da luta que as fugas pos­si­bi­li­taram.

Des­ta­cando o papel cen­tral dos co­mu­nistas na re­sis­tência ao fas­cismo, Je­ró­nimo de Sousa lem­brou todos quantos «so­freram as con­sequên­cias de um re­gime brutal e de­su­mano» pelo único crime de «lu­tarem pelo bem do seu povo e da sua pá­tria». Das mais de 20 mil pri­sões efec­tu­adas entre 1932 e o início da dé­cada de 60, a mai­oria foi de co­mu­nistas, que deram «exem­plos de co­ragem e de en­trega ge­ne­rosa à luta de li­ber­tação dos tra­ba­lha­dores e do povo».

Ao re­cordá-lo, o di­ri­gente do PCP não rei­vin­di­cava «louros e con­de­co­ra­ções para os mi­li­tantes co­mu­nistas e para o seu Par­tido». Su­bli­nhava, apenas, que «nesse tempo di­fícil da opressão e da re­pressão fas­cistas, nesse tempo em que lutar pela li­ber­dade e pela de­mo­cracia tinha como con­sequência ine­vi­tável a prisão, a tor­tura, muitas vezes a morte, os mi­li­tantes do PCP sou­beram as­sumir dig­na­mente a sua con­dição de co­mu­nistas, in­te­grando sempre, du­rante 48 anos, a pri­meira fila da luta e da re­sis­tência». Tal como du­rante a Re­vo­lução e de então até aos dias de hoje, acres­centou.

Os pe­rigos e como os com­bater

Os tempos em que vi­vemos, re­alçou Je­ró­nimo de Sousa, sendo di­fe­rentes da­queles em que se deu a Fuga de Ca­xias, «não está isento de pe­rigos». Um pouco por todo o mundo, lem­brou, ve­ri­ficam-se «in­qui­e­tantes mo­vi­men­ta­ções de forças re­ac­ci­o­ná­rias e fas­ci­zantes», às quais se impõe dar um «com­bate sem tré­guas».

Para o Se­cre­tário-geral do PCP, mais do que agi­gantar o pe­rigo da di­reita e da ex­trema-di­reita, tantas vezes por mero tac­ti­cismo, im­porta agir sobre as causas que lhe estão na origem, «as po­lí­ticas que fo­mentam as de­si­gual­dades e a ex­plo­ração». A ex­trema-di­reita, pros­se­guiu, ali­menta-se das po­lí­ticas do ne­o­li­be­ra­lismo do­mi­nante, res­pon­sá­veis pela ra­pina, a in­ge­rência e a guerra contra os povos, que fo­mentam o ra­cismo e a xe­no­fobia; pelo vi­o­lento au­mento da ex­plo­ração do tra­balho, pela des­truição de di­reitos so­ciais, por uma gi­gan­tesca e cres­cente con­cen­tração e po­la­ri­zação da ri­queza. Estas po­lí­ticas, «ser­vindo os se­nhores do di­nheiro e do mundo, des­preza o homem, os seus di­reitos e de­grada a de­mo­cracia», con­cluiu Je­ró­nimo de Sousa.

O efec­tivo com­bate à ex­trema-di­reita faz-se com po­lí­ticas que «sirvam os tra­ba­lha­dores e o nosso povo», o que se al­cança com mais força ao Par­tido que nos úl­timos cem anos mos­trou ser a mais con­se­quente força no com­bate aos provou, «nestes úl­timos cem anos, ser a mais con­se­quente força no com­bate aos pro­jectos re­ac­ci­o­ná­rios e na luta pelos di­reitos, a li­ber­dade e a de­mo­cracia.

 

Res­gatar a me­mória

 Não foi apenas o PCP a evocar os 60 anos da fuga do Re­duto Norte do Forte de Ca­xias. Também a União dos Re­sis­tentes e An­ti­fas­cistas Por­tu­gueses (URAP) co­me­morou esse

he­róico acto com uma ce­ri­mónia no pas­sado sá­bado, 4, exacto dia em que se cum­priam seis dé­cadas sobre esse feito le­vado a cabo por des­ta­cados mi­li­tantes co­mu­nistas, num salto para a li­ber­dade mo­vido pelo de­sejo de re­tomar o seu posto na luta de re­sis­tência ao fas­cismo.

Foi em Ca­xias, con­celho de Oeiras, numa área ver­de­jante e junto ao mo­nu­mento que nos re­corda os mi­lhares de ho­mens e mu­lheres que so­freram hor­rores às mãos do re­gime fas­cista e do seu apa­relho re­pres­sivo, que o acto de­correu a meio da manhã com a par­ti­ci­pação de Do­mingos Abrantes, um dos pro­ta­go­nistas da fuga, e de Álvaro Pato, ex-preso po­lí­tico.

Car­re­gada de muita emoção e «grande sim­bo­lismo», como a ca­rac­te­rizou Cle­mente Alves, também ele ex-preso po­lí­tico, que a di­rigiu, na ini­ci­a­tiva es­ti­veram pre­sentes cen­tenas de pes­soas, ex-presos po­lí­ticos e fa­mi­li­ares, e muitos ou­tros amigos e ac­ti­vistas da URAP.

E foi com po­emas da re­sis­tência, can­tados e de­cla­mados por José Pinho, An­tónio Pais e Au­gusto Matos, a que se jun­taram as vozes dos pre­sentes num imenso coro que fez soar mais alto o re­frão das can­ções, que o mo­mento de evo­cação co­meçou abrindo ca­minho à in­ter­venção de Álvaro Pato.

E foi um re­lato emo­ci­o­nado o que se ouviu, a lem­brar-nos que «foi graças ao sa­cri­fício e de­di­cação de muitos an­ti­fas­cistas, muitos deles presos vá­rios anos, que foi pos­sível alargar a luta dos de­mo­cratas pelas li­ber­dade e pelo fim da guerra co­lo­nial», bem como in­flu­en­ciar a «luta nos quar­téis e no te­atro de guerra das três co­ló­nias, pre­cur­sora do Mo­vi­mento dos Ca­pi­tães e da eclosão da Re­vo­lução do 25 de Abril e da uni­dade Povo/​MFA.»

Uma en­trega à luta pela li­ber­dade e pela de­mo­cracia que teve um custo ele­vado, «no plano fa­mi­liar e pes­soal, para cen­tenas de mi­lhares de por­tu­gueses, em par­ti­cular para os mais de 30 mil an­ti­fas­cistas que pas­saram pelas pri­sões nos 48 anos da di­ta­dura de Sa­lazar e Ca­e­tano e dos seus ser­ven­tuá­rios», su­bli­nhou ainda o filho do his­tó­rico di­ri­gente co­mu­nista Oc­távio Pato, que re­cordou factos vi­ven­ci­ados por si e por fa­mi­li­ares, ilus­tra­tivos, afinal, do que foram as vidas de tantos e tantos mi­lhares de ou­tras fa­mí­lias igual­mente «vi­o­len­tadas e des­tro­çadas pela PIDE por lu­tarem pela li­ber­dade e contra a di­ta­dura fas­cista».

Do que sig­ni­ficou a fuga de Ca­xias en­quanto der­rota do poder po­li­cial e da di­ta­dura fas­cista e de re­forço da luta an­ti­fas­cista, questão também abor­dada por Álvaro Pato, falou de­pois mais de­sen­vol­vi­da­mente Do­mingos Abrantes. «Um grande acon­te­ci­mento, uma «enorme der­rota para o fas­cismo e uma «grande vi­tória do Par­tido e da re­sis­tência», assim a ca­rac­te­rizou o mi­li­tante co­mu­nista e membro do Con­selho de Es­tado. E foi-o, ex­plicou, porque com a fuga de Ca­xias e, um ano antes, a de Pe­niche, o Par­tido «re­cu­perou pra­ti­ca­mente me­tade dos fun­ci­o­ná­rios que es­tavam presos», o que se cons­ti­tuiu num con­tri­buto para o «de­sen­vol­vi­mento da luta», num quadro em que esta co­nhecia já um «forte as­censo».

Re­al­çado foi, por fim, o valor e im­por­tância desta evo­cação, e o va­lores e en­si­na­mentos que com­porta para a luta pre­sente. «Hoje mais do que nunca é ne­ces­sário que nos em­pe­nhemos em res­gatar a me­mória. Vi­vemos uma si­tu­ação di­fícil e pe­ri­gosa e os an­ti­fas­cistas não podem ig­norar esta re­a­li­dade», alertou Do­mingos Abrantes, antes de deixar um apelo: «é bom que não se es­queça que as ban­deiras da li­ber­dade estão cheias de chagas, de muitas vidas sa­cri­fi­cadas», que a «li­ber­dade con­quis­tada em 25 de Abril foi o re­sul­tado de muita luta».

E ter­mi­nando como co­meçou, no acto houve de novo lugar às can­ções e po­emas, com pa­la­vras a im­porem-se como hinos à li­ber­dade.