João de Freitas Branco

Manuel Pires da Rocha

Sim­pli­ci­dade, mo­déstia, afa­bi­li­dade eram ca­rac­te­rís­ticas de João de Freitas Branco

Há vidas que se ce­le­bram muito para além do tempo que te­nham po­dido durar. Por isso faz tanto sen­tido as­si­nalar o cen­te­nário do nas­ci­mento de João de Freitas Branco, assim ce­le­brando uma vida tão sig­ni­fi­ca­tiva para o fu­turo que o mu­si­có­logo (e ma­te­má­tico) ajudou a cons­truir.

E faz sen­tido, também, que seja o Par­tido Co­mu­nista Por­tu­guês a «en­car­regar-se» de manter acesa a chama do pen­sa­mento dos que – mi­li­tantes co­mu­nistas ou não – con­tri­buíram, con­tri­buem e ve­nham a con­tri­buir para «a cri­ação de uma so­ci­e­dade sem classes an­ta­gó­nicas ins­pi­rada por va­lores hu­ma­nistas, a de­mo­cracia com­pre­en­dida na com­ple­men­ta­ri­dade das suas ver­tentes eco­nó­mica, so­cial, po­lí­tica e cul­tural».

João de Freitas Branco apre­senta-se: «Nasci no pró­prio edi­fício do Con­ser­va­tório [Na­ci­onal]. A minha mãe re­velou-me bas­tante mais tarde que os pri­meiros sons que eu ouvi foram os de uma So­nata para piano de Haydn, que es­tava a ser tan­gida por baixo do quarto em que nasci. Co­mecei a aprender mú­sica aos cinco anos, com a minha mãe. Es­tudei mú­sica, fiz a ins­trução pri­mária por­tu­guesa e a alemã, na Es­cola Alemã de Lisboa. Saí desta Es­cola em 1934, fun­da­men­tal­mente porque o meu pai me ouviu cantar uma canção hi­tle­riana (Hi­tler tinha su­bido ao poder em 1933 e, em 1934, já se can­tava de cor uma canção hi­tle­riana).»

Imerso na mú­sica, mas agra­dado também da ma­te­má­tica e do des­porto, Freitas Branco atribui ao «ra­ci­o­na­lismo ado­les­cente» a atracção pela car­reira mi­litar, que lhe per­mi­tiria con­jugar os três in­te­resses. De­sis­tiria, porém, da in­cli­nação cas­trense, for­mando-se em Ci­ên­cias Ma­te­má­ticas. Par­ti­lharia, no início da sua vida pro­fis­si­onal, a ma­te­má­tica com a crí­tica mu­sical: le­ci­o­nava no liceu ao mesmo tempo que es­crevia nas pá­ginas de O Sé­culo, re­a­li­zava pa­les­tras, co­la­bo­rava com a re­vista Arte Mu­sical, de que o seu pai – o com­po­sitor Luís de Freitas Branco – era di­retor. Mas «a pró­pria vida e o am­bi­ente fa­mi­liar» en­car­re­garam-se de lhe apontar o as­sunto mu­sical como rumo prin­cipal de vida. Ini­ciou, então, ac­ti­vi­dade pro­fis­si­onal na Emis­sora Na­ci­onal. O baixo sa­lário que au­feria, por um lado, e a ob­jecção às suas «ten­dên­cias po­lí­tico-fi­lo­só­ficas», por outro lado, le­varam-no a en­ve­redar por uma car­reira ad­mi­nis­tra­tiva no Au­to­móvel Club de Por­tugal («eu, que nem sabia guiar um au­to­móvel»). Cerca de duas dé­cadas de­pois, em 1970, e não obs­tante as suas sim­pa­tias opo­si­ci­o­nistas, João de Freitas Branco é con­vi­dado a di­rigir o Te­atro de São Carlos. A Re­vo­lução de Abril virá mudar-lhe (de novo) o rumo, en­car­re­gando-o de ta­refas go­ver­na­tivas na área da Cul­tura (que de­sem­pe­nhou até ao úl­timo go­verno de Vasco Gon­çalves).

Nas mil vidas que viveu, nunca Freitas Branco aban­donou os ofí­cios da crí­tica e da di­vul­gação mu­sical – no livro, na im­prensa es­crita, na rádio e na te­le­visão. Era seu (e agora nosso) o pro­grama ra­di­o­fó­nico O Gosto Pela Mú­sica, no ar ao longo de 29 anos (1956 – 1985), através do qual ge­ra­ções de ou­vintes apren­deram a ori­entar-se nas par­ti­turas das grandes mú­sicas da Hu­ma­ni­dade. Foi fun­dador da Ju­ven­tude Mu­sical Por­tu­guesa, pre­si­dente da As­so­ci­ação de Ami­zade Por­tugal-RDA, pen­sador com vasta obra pu­bli­cada, pro­fessor uni­ver­si­tário, Doutor Ho­noris Causa em Fi­lo­sofia pela Uni­ver­si­dade Hum­boldt (Berlim), dis­tin­guido com a Me­dalha de Mé­rito da Se­cre­taria de Es­tado da Cul­tura – al­guns passos da vida cheia do in­te­lec­tual por­tu­guês, que não é di­fe­rente da vida do amigo que Vasco Gon­çalves evocou no dia do seu fu­neral: «no dia-a-dia, quem con­vi­vesse com João de Freitas Branco, quem com ele fa­lasse ou tro­casse ideias ou opi­niões, quem com ele es­tu­dasse ou dis­cu­tisse ob­ser­vava fa­cil­mente, ne­ces­sa­ri­a­mente, a grande sim­pli­ci­dade, a mo­déstia, a hu­mil­dade, a afa­bi­li­dade, a com­pre­ensão, a to­le­rância pró­prias dos ho­mens de grande saber.




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