O futuro não está no passado

Luís Carapinha

Uma ordem mais justa im­plica a rup­tura com o mo­delo ne­o­co­lo­nial

A guerra na Ucrânia, não dis­si­pada a cor­tina de ne­vo­eiro e re­sol­vido o mar de in­cóg­nitas que inunda o ho­ri­zonte, marca uma cer­teza. De­pois de 24 de Fe­ve­reiro en­trámos noutro mundo. Noutro pa­tamar qua­li­ta­tivo do feixe de con­tra­di­ções fun­da­men­tais em dis­puta na arena in­ter­na­ci­onal. Do cavar das novas li­nhas tec­tó­nicas de di­visão mun­dial a que a ur­gência da crise e es­pectro de de­clínio im­pele os EUA, a NATO e o im­pe­ri­a­lismo, num ca­minho cada vez mais pe­ri­goso e in­sano.

A aposta mi­li­ta­rista e a es­tra­tégia da es­piral de tensão pro­du­ziram os seus frutos. A guerra em curso não é apenas uma imensa tra­gédia para os povos ucra­niano e russo. Além de «um acon­te­ci­mento ge­o­po­lí­tico maior, é também um ponto de vi­ragem geo-eco­nó­mico», re­co­nhece um ar­tigo da in­flu­ente Fo­reign Af­fairs dos EUA (22.3.2022). Para o di­rector exe­cu­tivo da Blac­kRock, maior ges­tora de ac­tivos do mundo, «a in­vasão da Ucrânia pôs fim à glo­ba­li­zação» das «úl­timas três dé­cadas», prog­nos­ti­cando que «a re­o­ri­en­tação em larga es­cala das ca­deias de abas­te­ci­mento será ine­ren­te­mente in­fla­ci­o­nária» (Reu­ters, 24.3.2022). A es­tag­flação veio para ficar, numa eco­nomia mun­dial não res­sar­cida da re­cessão pan­dé­mica (nem se­quer re­cu­pe­rada da crise de 2008-2009).

Não é se­gredo que Washington iden­ti­fica na China o grande ad­ver­sário sis­té­mico do sé­culo e fixa na Rússia o elo mais fraco. O apro­fun­da­mento da re­lação es­tra­té­gica ao longo do eixo Pe­quim-Mos­covo re­pre­senta um pe­sa­delo para os arautos do mundo livre do pen­sa­mento único. Apro­vei­tando para des­ferir xeque-mate nas as­pi­ra­ções de «au­to­nomia es­tra­té­gica» da UE e em­purrar a Ale­manha para o ca­minho tor­men­toso, de má me­mória, de re­cons­ti­tuição do po­derio mi­litar, a Ad­mi­nis­tração Biden lança-se na fuga para a frente da ope­ração de iso­la­mento da Rússia da eco­nomia mun­dial.

Não é coisa pouca o que está em jogo. A «con­tenção» da 11.ª eco­nomia mun­dial, po­tência ener­gé­tica, «com um so­fis­ti­cado com­plexo mi­litar (…) e uma cesta di­ver­si­fi­cada de ex­por­ta­ções de pro­dutos e ma­té­rias-primas cons­titui uma cam­panha sem pre­ce­dentes». O tiro pode sair pela cu­latra, alerta-se: «as san­ções (…) po­derão fa­lhar, não pela sua fra­queza, mas pela sua (…) força im­pre­vi­sível» e ar­rastar o mundo para uma [nova] re­cessão. A sua es­ca­lada in­fli­girá «mais danos, não apenas aos pró­prios san­ci­o­na­dores, mas à eco­nomia mun­dial em geral», sendo que na Eu­ropa será mais agudo «o pro­blema de ad­mi­nis­trar as con­sequên­cias da guerra eco­nó­mica», en­quanto no plano geral «per­ma­ne­cerão ele­vados os riscos de es­ca­lada es­tra­té­gica» (FA, 22.3.2022).

De Wall Street chega o alarme, tem­pe­rado pela pers­pec­tiva do re­forço da uti­li­zação das mo­edas na­ci­o­nais no co­mércio in­ter­na­ci­onal, no­me­a­da­mente, entre a China, a Rússia e a Índia. O con­ge­la­mento das re­servas ex­ternas da Rússia pode minar a con­fi­ança no dólar, co­lo­cando em causa o seu do­mínio mun­dial, ad­verte uma nota do Goldman Sachs. O JP Morgan avisa que a guerra e a in­cer­teza em torno das ca­deias glo­bais «con­tri­buem para uma si­tu­ação po­ten­ci­al­mente ex­plo­siva» (RT, 4.4.2022).

Nesta en­cru­zi­lhada, emerge a causa da luta pela de­mo­cra­ti­zação das re­la­ções in­ter­na­ci­o­nais. A cons­trução de uma ordem eco­nó­mica e in­ter­na­ci­onal mais justa, al­me­jada pelos povos, im­plica uma rup­tura com o cariz ne­o­co­lo­nial e im­pe­ri­a­lista do sis­tema de­ca­dente que os EUA e as po­tên­cias do G7 pre­tendem em de­ses­pero de causa per­pe­tuar.




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