Manuel Freire

Manuel Pires da Rocha

Ma­nuel Freire cons­truiu uma obra de grande qua­li­dade, can­tando sempre «o que quis»

Anda sempre a nossa vida à cata de pre­textos para que a pos­samos co­me­morar. Mas há quem não pre­cise disso: Ma­nuel Freire cum­priu 80 anos em 25 de Abril de 2022, e há já 48 anos que tem ra­zões para co­me­morar duas vezes o dia de bons nas­ci­mentos (três, se lhes jun­tarmos o 25 Aprile, de 1945, em que a Itália se li­vrou do fas­cismo). Não sa­biam os pais da­quele moço nas­cido a 25 de Abril de 1942, em Vagos (mas criado em Ovar), que o re­bento viria a ser pro­ge­nitor, também ele, de um 25 de Abril ainda por nascer. Não é coisa que se adi­vinhe, nem que se pro­grame, se­quer – as re­vo­lu­ções são de muito mais cus­tosa con­cepção do que as cri­a­turas de Deus, nestas bas­tando a agre­mi­ação de duas cé­lulas com­pa­tí­veis e a es­pera de nove meses e, nas ou­tras, quí­micas bem mais com­pli­cadas e, no caso da nossa de Abril, 48 anos de ges­tação.

Em 1962, Ma­nuel Freire está em Coimbra para es­tudar En­ge­nharia, mas o cur­rí­culo que ali cum­priu ficou mais abun­dan­te­mente re­gis­tado nos pa­péis opo­si­ci­o­nistas por que deu o nome do que nas ca­der­netas uni­ver­si­tá­rias. De­pressa é mo­bi­li­zado para o ser­viço mi­litar – irá para Mon­santo «servir a Pá­tria», para mais perto do olhar vi­gi­lante do re­gime fas­cista. De­pois virão as fun­ções de quadro su­pe­rior nas me­ta­lúr­gicas F. Ra­mada, pri­meiro, e de­pois na Tomé Fe­teira onde ter­mi­naria o seu per­curso pro­fis­si­onal além «das can­tigas».

A gui­tarra com­prada a um primo daria «or­questra» ao ado­les­cente ex­pe­ri­men­tador das can­ções de Do­novan, de Bob Dylan, dos cri­a­dores da canção fran­cesa. Mais tarde, ou­vindo José Afonso, Ma­nuel Freire per­cebe que a língua por­tu­guesa é capaz da aven­tura mu­sical e da atenção da gente dis­po­nível para a luta an­ti­fas­cista, que era (e assim per­ma­nece) um dos ta­lentos da Arte. Pelo ca­minho houve uma pre­sença no pro­grama te­le­vi­sivo Zip-Zip, que per­mi­tiria ao cantor am­pliar a vi­si­bi­li­dade da sua obra.

À se­me­lhança de Carlos Pa­redes, Ma­nuel Freire nunca virá a ser só-cantor/​com­po­sitor – «eu nunca vivi da mú­sica e não me ar­re­pendo. Porque o facto de ter a mú­sica como ac­ti­vi­dade se­cun­dária, da qual eu não de­pendo para viver, per­mitiu-me sempre cantar o que quis, onde quis, para quem quis e nas con­di­ções em que quis». Tal «des­pren­di­mento» não im­pediu Ma­nuel Freire de cons­truir uma obra de grande qua­li­dade, evi­dente nos textos mu­si­cais que compôs para po­emas seus e para os po­emas (mai­o­ri­tá­rios na sua obra) que foi «rou­bando» a poeta alheio. Ma­nuel Freire foi, assim, cons­ti­tuindo um Can­ci­o­neiro em que al­gumas can­ções per­deram já a menção da au­toria, vi­vendo o pri­vi­légio da pas­sagem à con­dição de toada po­pular, in­cor­po­rada na me­mória in­di­vi­dual a que cha­mamos Cul­tura, traço iden­ti­tário por que res­pon­demos co­lec­ti­va­mente.

Pedra Fi­lo­sofal, Livre («não há ma­chado que corte a raiz ao pen­sa­mento«), Eles («ei-los que partem»), Lá­grima de Preta, Pedra Fi­lo­sofal e tantas mais can­ções, são fer­ra­mentas da luta de­mo­rada pela eman­ci­pação dos hu­manos, todas es­sen­ciais no tempo em que foram es­critas e – por des­ven­tura, às vezes – no tempo que é o nosso.

Ma­nuel Freire cum­priu 80 anos. A sua «folha de ser­viço» re­gista os en­cargos pas­sados e pre­sentes de com­po­sitor, cantor, poeta, au­tarca, re­pre­sen­tante la­boral, pre­si­dente da SPA. Subiu ao palco no pas­sado dia 23, em Lisboa, para que os amigos lhe de­vol­vessem as can­tigas. Nin­guém ali achou que o ani­ver­sário pu­desse ser a razão pri­meira da­quela festa-sem-pre­cisar-de-pre­texto. Até porque, anos antes, Ma­nuel Freire tinha dito aos mi­cro­fones da rádio a pro­pó­sito do dia em que nasceu: «o nas­ci­mento é uma coisa que a gente co­me­mora não sei porquê. O re­nas­ci­mento em 25 de Abril de 1974, esse sim, foi im­por­tante. É esse que é pre­ciso co­me­morar».




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