O Misantropo, de Martim Crimp, a partir de Molière

Domingos Lobo

Escrito há 300 anos, O Misantropo mantém-se uma sátira acutilante à sociedade do capitalismo neoliberal

O dramaturgo britânico Martin Crimp pega num dos textos clássicos de Molière, O Misantropo, tal como o fez com textos de Genet, Tchékhov, Eurípedes e outros, transferindo para os nossos dias a sátira demolidora do grande comediógrafo francês, sobre a hipocrisia vivida na corte francesa do século XVII.

A evocação do texto de Molière, que serve de apoio à agudeza crítica que percorre o texto do dramaturgo inglês, acontece logo no início da peça de Crimp, num diálogo sobre a verdade e o embuste nas sociedades contemporâneas, nomeadamente entre as classes privilegiadas ligadas às artes (cinema, teatro, tabloides e revistas de coração), estabelecido entre misantropo Alceste e o seu amigo John.

Alceste denuncia, de modo agastado, a hipocrisia que grassa entre as classes com poder e dinheiro, a falsidade que campeia nas relações sociais, a frivolidade, a cupidez e a imoralidade que alastra nas ligações amorosas, destruindo as noções ancestrais do romantismo e do respeito conjugal. John, ataca-o, acusando-o de afectado, de ser um moralista, um elitista autoproclamado, ao que Alceste contrapõe, afirmando-se contra uma sociedade que vive de salamaleques e rapapés, de cortesias e parlapiés, falsidades e vazio.

São as vidas de mentira, de aparências, de jogos de espelhos, de má-língua e intriga, que exaspera Alceste, e que Crimp vai buscar a Molière, que leva o autor de O Resto Já Devem Conhecer do Cinema, a duramente criticar as classes possidónias e o que as derivas neoliberais vêm construindo, a nível da degenerescência dos comportamentos sociais e do seu lado opaco e falso, nas sociedades contemporâneas. Vive-se, em alguns círculos, o efémero, a dissimulação, o lado plástico e falso da vida onde, já não o céu, mas o dinheiro e o domínio que a partir dele se obtém, são o limite, mesmo pisando quem se atreve a estorvar o caminho até ao topo. É dessa imoral frivolidade, dessa ausência de escrúpulos, de valores humanos e morais, que a peça de Crimp, com o apoio de mestre Molière, nos fala, utilizando o tom sério e acutilante que a comédia permite.

Quando em 1973, Luís Miguel Cintra encenou na Cornucópia a peça de Molière era outro o país, e foi outra a preocupação de Cintra na abordagem cénica de O Misantropo, virada então, dentro dos limites concedidos pela Censura, para a denúncia do cinismo beato e das injustiças praticadas pelo Estado Novo. Sobre este seu espectáculo, dirá Cintra ser uma responsabilidade e uma espécie de vida, aquela que se tentava, ao tempo, criar num palco.

O teatro, sobretudo as peças que Nuno Carinhas continua a encenar para nosso desassossego e gáudio, trazem-nos sempre cadinhos de vida, de verdades, de sinais e de responsabilidades cívicas, morais e éticas que se colam à vertigem dos nossos conturbados dias e nos alertam para a espécie de vida que estamos a viver – a sua dura factualidade.

Como é que uma peça com mais de 300 anos, embora magnificamente reconstruída nos seus propósitos originais, continua a ter plasmados no seu inventário crítico, os mesmos vícios, os mesmos atropelos, a mesma cupidez, os mesmos pesadelos que Molière já denunciava no século das luzes?

Por isso, porque as pessoas e as suas circunstâncias não mudaram na essência, é que Alceste ao acordar verifica que está só, que o mundo que o rodeia, mesmo aqueles que lhe eram mais próximos como John e Marcia, continua a viver uma farsa, um baile de máscaras, um embuste embrulhado em luxo. De que lhe servirá o seu afrontamento, a sua verdade se esse mundo, ao qual pertence, ensurdeceu e cegou?

Registamos a justeza, as interpretações eivadas de subtil mordacidade, de Ivo Alexandre (Alcestre), Leonor Alecrim (Jennifer), João Cabral (John) e Teresa Gafeira (Marcia).

Um bom espectáculo da Companhia de Teatro de Almada. A justificar, uma vez mais, uma ida à magnífica sala de Almada: Teatro Municipal Joaquim Benite.




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