Se queremos preservar o SNS precisamos de lutar por ele

«É ver­dade que o Ser­viço Na­ci­onal de Saúde atra­vessa tempos di­fí­ceis, sofre de li­mi­ta­ções graves, fruto de dé­cadas de po­lí­ticas que o fra­gi­li­zaram. Mas que nin­guém se deixe en­ganar pela pro­pa­ganda dos que o querem des­truir», alertou Je­ró­nimo de Sousa, antes de instar o Go­verno a passar das pa­la­vras aos actos.

«O Go­verno sabia que o re­sul­tado da sua inércia seria de­sas­troso»

O Se­cre­tário-geral do PCP fez o di­ag­nós­tico, apontou res­pon­sá­veis e in­dicou o ca­minho para a re­so­lução dos pro­blemas do SNS, numa tri­buna pú­blica pro­mo­vida na manhã de se­gunda-feira, 18, frente ao Centro de Saúde do Olival, no Cacém, Sintra.

O local não foi es­co­lhido ao acaso, como, aliás, re­sultou claro dos tes­te­mu­nhos que, antes do di­ri­gente co­mu­nista, pas­saram pelo púl­pito. Sofia Grilo, Amé­rico Va­lente e José Ra­nita, à vez, tra­çaram o quadro di­fícil que os utentes da­quela uni­dade – e do con­celho – en­frentam para aceder a cui­dados de saúde. É que Sintra não tem, no seu ter­ri­tório ge­o­grá­fico, um hos­pital pú­blico com as va­lên­cias ne­ces­sá­rias, es­tando os seus 400 mil ha­bi­tantes afectos aos hos­pi­tais Ama­dora-Sintra e Cas­cais, que se en­con­tram em evi­dente rup­tura.

Acresce que cerca de 120 mil utentes não têm mé­dico de fa­mília e nos cen­tros e ex­ten­sões de saúde do con­celho faltam também en­fer­meiros, au­xi­li­ares, téc­nicos ou ad­mi­nis­tra­tivos. A si­tu­ação é par­ti­cu­lar­mente grave pre­ci­sa­mente no centro de saúde junto ao qual de­correu a ini­ci­a­tiva, onde entre os cerca de 18 mil ins­critos, 13 mil não têm mé­dico de fa­mília. É por isso fre­quente ver longas filas e de­ses­pero para con­se­guir aten­di­mento mé­dico, in­cluindo para cri­anças, idosos, do­entes cró­nicos e on­co­ló­gicos, re­la­taram.

Ora, na sua in­ter­venção pe­rante uma pla­teia de utentes do SNS, Je­ró­nimo de Sousa não es­condeu os pro­blemas aos quais o SNS foi con­du­zido, pelo con­trário. Ad­vertiu, no en­tanto, para o ob­jec­tivo da cam­panha em curso, pro­po­si­ta­da­mente mon­tada para de­ne­grir o sis­tema pú­blico e os seus pro­fis­si­o­nais, que, apesar de tudo, «con­ti­nuam a prestar o fun­da­mental dos cui­dados de saúde à po­pu­lação (…), in­de­pen­den­te­mente da con­dição eco­nó­mica e so­cial de cada um».

«É que no SNS não há cli­entes nem ob­jec­tivos de lucro a atingir, mas sim utentes e po­pu­la­ções que têm de ser aten­didos, seja qual for a pa­to­logia, o seu custo ou a sua com­ple­xi­dade», lem­brou ainda Je­ró­nimo de Sousa, que con­ti­nuou a de­marcar di­fe­renças entre a pres­tação de cui­dados no pú­blico e no pri­vado: «ao con­trário do que acon­tece com os hos­pi­tais dos grupos eco­nó­micos, em que gerem para fac­turar o mais pos­sível só com o tra­ta­mento das do­enças, no SNS tra­balha-se não só para tratar as do­enças, mas para as pre­venir, para pro­mover a saúde dos in­di­ví­duos, das fa­mí­lias e da co­mu­ni­dade em geral. Para os grupos eco­nó­micos pri­vados o que dá lucro é a do­ença. Para o SNS o que é im­por­tante é que cada um viva o mais pos­sível sau­dável e com qua­li­dade».

Res­pon­sá­veis

«Não há como es­conder que há pro­blemas sé­rios no SNS», in­sistiu o Se­cre­tário-geral do PCP. Con­tudo, es­cla­receu que «eles não acon­tecem por acaso. São o re­sul­tado de muitos anos de de­sin­ves­ti­mento, sub­fi­nan­ci­a­mento e so­bre­tudo de de­gra­dação da si­tu­ação dos pro­fis­si­o­nais, ao mesmo tempo que existiu uma forte aposta dos grupos pri­vados da saúde nos úl­timos anos, na sua ca­pa­ci­dade e ins­ta­la­ções.»

Res­pon­sá­veis pela si­tu­ação são «os vá­rios go­vernos e também o ac­tual», acusou, uma vez que, «sa­biam e não po­diam deixar de saber, que ao des­va­lo­ri­zarem as car­reiras, ao des­res­pei­tarem os pro­fis­si­o­nais, ao de­sor­ga­ni­zarem os ser­viços, es­tavam a con­tri­buir para os em­purrar para fora do SNS e a tornar os ser­viços pú­blicos menos atrac­tivos para os jo­vens, que se vão anu­al­mente for­mando».

«De outra forma, como po­de­riam os grupos eco­nó­micos pri­vados ter con­se­guido des­viar do SNS para as suas uni­dades tantos pro­fis­si­o­nais de saúde, se estes não se en­con­trassem num ce­nário de des­va­lo­ri­zação das re­mu­ne­ra­ções, des­res­peito pelos seus di­reitos, de ele­vadas cargas de tra­balho e sem pers­pec­tiva de uma real pro­gressão na car­reira e va­lo­ri­zação do seu es­ta­tuto pro­fis­si­onal?», ques­ti­onou o di­ri­gente co­mu­nista, que con­ti­nuou a acusar o ac­tual exe­cu­tivo, li­de­rado por An­tónio Costa.

De resto, «o Go­verno as­sistiu pas­si­va­mente ao au­mento do nú­mero de utentes sem mé­dico de fa­mília de 700 mil para cerca de um mi­lhão e 300 mil em menos de três anos; as­sistiu à ca­rência acen­tuada de ou­tras es­pe­ci­a­li­dades mé­dicas, como anes­te­sistas ou obs­te­tras; à cres­cente en­trega de ser­viços de ur­gência a pro­fis­si­o­nais con­tra­tados à ta­refa, através de em­presas de co­lo­cação de mão-de-obra, ga­nhando à hora muito mais do que os pro­fis­si­o­nais do quadro dos hos­pi­tais», en­fa­tizou Je­ró­nimo de Sousa, re­cla­mando, neste con­texto, razão para, em Ou­tubro de 2021, o PCP ter vo­tado contra a pro­posta de Or­ça­mento do Es­tado.

Mas, mais grave, «o Go­verno as­sistiu a tudo e não tomou as me­didas ne­ces­sá­rias para co­meçar a in­verter esta grave si­tu­ação», pelo que «a con­clusão a tirar só pode ser uma: o Go­verno sabia que o re­sul­tado da sua inércia seria de­sas­troso e quis que assim fosse, sabia que o re­sul­tado seria o en­fra­que­ci­mento do SNS e um campo aberto para o sector pri­vado e quis que assim fosse.»

So­lu­ções sim

O Se­cre­tário-geral do Par­tido pros­se­guiu de­pois a sua in­ter­venção cha­mando a atenção para o facto de as me­didas anun­ci­adas pelo Go­verno para a Saúde serem «em grande parte de con­cre­ti­zação ainda bas­tante in­de­fi­nida», mos­trando «que con­tinua a atirar ao lado». Exemplo disso mesmo é o que já se co­nhece do «Es­ta­tuto do SNS», o qual «cons­titui um evi­dente recuo em re­lação à nova Lei de Bases de Saúde, apro­vada em 2019».

Je­ró­nimo de Sousa adi­antou por isso so­lu­ções para res­gatar o SNS da de­gra­dação e de­fi­nha­mento. Em pri­meiro lugar, «o pro­blema da falta de mé­dicos de fa­mília não se re­solve com a con­tra­tação de mé­dicos in­di­fe­ren­ci­ados, des­va­lo­ri­zando a es­pe­ci­a­li­dade de me­di­cina geral e fa­mi­liar, mas com a va­lo­ri­zação desta car­reira nos cen­tros de saúde, tal como a dos en­fer­meiros e ou­tros pro­fis­si­o­nais.»

Em se­gundo lugar, «o pro­blema do acesso aos cui­dados pri­má­rios de saúde não se re­solve subs­ti­tuindo as con­sultas pre­sen­ciais por con­sultas te­le­fó­nicas, mas ga­ran­tindo a pre­sença de mé­dicos e en­fer­meiros de fa­mília». E «nem é su­fi­ci­ente criar mais apli­ca­ções in­for­má­ticas para o aten­di­mento ad­mi­nis­tra­tivo», porque o que «é mesmo es­sen­cial» é «con­tratar mais tra­ba­lha­dores».

Por outro lado, «o pro­blema das ur­gên­cias hos­pi­ta­lares não se re­solve com a con­tra­tação de mais ta­re­feiros, nem im­pe­dindo as pes­soas, que não têm mais ne­nhuma al­ter­na­tiva quando estão do­entes, mesmo que com pouca gra­vi­dade, de lá irem. E também não se pode re­solver com o en­cer­ra­mento de mais ser­viços de ur­gência, sejam obs­té­tricas, pe­diá­tricas ou ge­rais, afas­tando ainda mais as po­pu­la­ções das res­postas a que têm di­reito. Re­solve-se ga­ran­tindo as con­di­ções para atrair e reter mais es­pe­ci­a­listas nos hos­pi­tais pú­blicos e as­se­gu­rando às po­pu­la­ções uma res­posta efec­tiva para os casos de do­ença aguda, mas não grave, nos cui­dados pri­má­rios de saúde».

Fi­nal­mente, «o pro­blema geral da falta de mé­dicos não se re­solve com uma pro­posta como a da cha­mada “de­di­cação plena”, com con­tornos ainda pouco co­nhe­cidos, mas em que já se per­cebe que o even­tual acrés­cimo de re­mu­ne­ração é à custa de mais ho­rário de tra­balho e da so­bre­carga das fun­ções destes pro­fis­si­o­nais», re­alçou igual­mente Je­ró­nimo de Sousa, que voltou a acusar o Go­verno de, «ao não tomar me­didas efi­cazes», estar «de­li­be­ra­da­mente a per­mitir a de­gra­dação do SNS e a fa­vo­recer os grupos pri­vados da saúde».

«É que estes grupos não só ga­rantem boa parte do seu fi­nan­ci­a­mento com trans­fe­rên­cias do Ser­viço Na­ci­onal de Saúde (cerca de 40% da des­pesa cor­rente), como pros­peram tanto mais quanto mai­ores forem as di­fi­cul­dades do SNS. E o que o Go­verno se pre­para para fazer é en­tregar mais uma fatia do SNS ao pri­vado, apre­sen­tando essa opção como uma falsa ine­vi­ta­bi­li­dade».

Pa­li­a­tivos, não

Não há, porém, «ne­nhuma ine­vi­ta­bi­li­dade», já que «é pos­sível re­forçar o SNS e assim for­ta­lecer o di­reito da po­pu­lação à saúde.» Assim o queira o Go­verno, rei­terou o Se­cre­tário-geral do PCP, para quem urge «pôr fim ao sub­fi­nan­ci­a­mento» do SNS, «me­lhorar as re­mu­ne­ra­ções dos seus pro­fis­si­o­nais, ga­rantir uma efec­tiva pro­gressão na car­reira e aplicar me­didas ur­gentes como a pro­posta do PCP de de­di­cação ex­clu­siva, com um au­mento de 50% da re­mu­ne­ração base, a bo­ni­fi­cação do tempo de ser­viço para uma mais rá­pida da pro­gressão na car­reira e ou­tros apoios.»

«Se quer, de facto, me­lhorar os cui­dados pri­má­rios de saúde, tem em pri­meiro lugar de ga­rantir que toda a po­pu­lação tem acesso a mé­dico e en­fer­meiro de fa­mília, pôr fim à enorme di­fe­ren­ci­ação entre os utentes (e também os pro­fis­si­o­nais) que estão em Uni­dades de Saúde Fa­mi­li­ares e aqueles que estão nas res­tantes».

«Se o Go­verno quer de facto va­lo­rizar o SNS, não pode con­ti­nuar a adiar in­ves­ti­mentos nas ins­ta­la­ções das uni­dades de saúde e nos equi­pa­mentos clí­nicos ne­ces­sá­rios, evi­tando aliás mais des­pesa com aqui­sição de ser­viços aos pri­vados», sin­te­tizou Je­ró­nimo de Sousa, que dando como exemplo o con­celho de Sintra – onde uma nova uni­dade hos­pi­talar pú­blica está a ser cons­truída mas com fi­nan­ci­a­mento da au­tar­quia, va­lên­cias e camas de in­ter­na­mento in­su­fi­ci­entes –, apelou a que aus­culte o clamor das po­pu­la­ções, dos utentes que se mo­bi­lizam por todo o País em de­fesa do SNS.

«As po­pu­la­ções e os pro­fis­si­o­nais de saúde podem contar com o PCP, com a nossa de­ter­mi­nação na de­fesa desta con­quista de Abril que é pa­tri­mónio do nosso povo» e «não pode ser hi­po­te­cada aos in­te­resses de um pu­nhado de pri­vi­le­gi­ados», ga­rantiu, a con­cluir.