Não há dificuldade que Cuba não seja capaz de superar

Gustavo Carneiro – texto Jorge Caria – fotos

José Fidel San­tana Nuñez é pri­meiro vice-mi­nistro da Ci­ência, Tec­no­logia e Meio Am­bi­ente da Re­pú­blica de Cuba e, du­rante anos, tra­ba­lhou nas áreas da energia nu­clear e do de­sar­ma­mento. De pas­sagem por Por­tugal, onde par­ti­cipou na Con­fe­rência dos Oce­anos das Na­ções Unidas, con­cedeu uma en­tre­vista ao Avante!, na qual evi­den­ciou a pri­o­ri­dade que a Re­vo­lução con­cedeu desde sempre à ino­vação e ao co­nhe­ci­mento, fun­da­men­tais para o de­sen­vol­vi­mento so­be­rano do país.

«Es­tamos a im­ple­mentar um sis­tema de go­verno ba­seado na Ci­ência e na Ino­vação»

Quais as prin­ci­pais pre­o­cu­pa­ções am­bi­en­tais de Cuba?
As pre­o­cu­pa­ções am­bi­en­tais de Cuba coin­cidem, no es­sen­cial, com as pri­o­ri­dades do mundo. Es­tamos con­fron­tados com o mesmo ce­nário de al­te­ra­ções cli­má­ticas, de con­ta­mi­nação dos oce­anos por plás­tico, de perda da bi­o­di­ver­si­dade. Como país in­sular, es­tamos também muito vul­ne­rá­veis à su­bida do nível das águas do mar, com as con­sequên­cias ao nível da in­fil­tração sa­lina dos len­çóis freá­ticos.

Tudo isto en­contra-se con­tem­plado num plano de Es­tado de com­bate às al­te­ra­ções cli­má­ticas, sus­ten­tado em 15 ou 20 anos de in­ves­ti­gação ci­en­tí­fica, a que cha­mámos Ta­refa Vida. Nesse plano de­fine-se os ter­ri­tó­rios e os sec­tores pri­o­ri­tá­rios, como o ener­gé­tico e o agro-ali­mentar, es­tra­té­gicos e par­ti­cu­lar­mente sen­sí­veis a estas ques­tões, e iden­ti­fica-se eixos de acção es­tra­té­gicos e me­didas para os con­cre­tizar.

Toda a po­pu­lação par­ti­cipa na exe­cução da Ta­refa Vida. Cada mu­ni­cípio tem o seu pró­prio plano, com ac­ções e ori­en­ta­ções bem de­fi­nidas. O con­trolo é feito ao mais alto nível, com o pró­prio Pre­si­dente da Re­pú­blica a ve­ri­ficar sis­te­ma­ti­ca­mente como a so­ci­e­dade no seu con­junto res­ponde a estas ques­tões.

Es­tamos igual­mente a apostar na eco­nomia cir­cular, para re­duzir re­sí­duos, e a pro­tecção da bi­o­di­ver­si­dade en­contra-se ju­ri­di­ca­mente con­sa­grada.

Já em 1992, o Co­man­dante Fidel Castro fez um dis­curso me­mo­rável no qual de­nun­ciou a de­gra­dação am­bi­ental pro­vo­cada pelo ca­pi­ta­lismo e os pe­rigos para a Hu­ma­ni­dade que daí de­cor­riam. Muitos con­si­de­raram, na al­tura, esse dis­curso «ca­tas­tro­fista»…

O que hoje es­tamos a fazer é con­se­quente com o le­gado de Fidel e a di­recção do país desde a Re­vo­lução.

De que modo o ilegal e cri­mi­noso blo­queio eco­nó­mico, co­mer­cial e fi­nan­ceiro im­posto pelo EUA pre­ju­dica as metas tra­çadas por Cuba nestas áreas?
Para nós, é claro o que temos de fazer e como temos de o fazer! E o blo­queio é o obs­tá­culo fun­da­mental a que o fa­çamos, é a prin­cipal bar­reira ao nosso de­sen­vol­vi­mento. É graças ao blo­queio que não temos acesso a al­gumas tec­no­lo­gias e fi­nan­ci­a­mentos, es­sen­ciais para qual­quer país, ao mesmo tempo que nos cria di­fi­cul­dades para de­sen­vol­vermos ca­pa­ci­dades pró­prias.

Somos obri­gados a apostar na so­li­da­ri­e­dade e a pro­curar al­ter­na­tivas que não se­riam as mais evi­dentes. Mas o blo­queio per­segue quem nos ajuda, quem nos venda tec­no­logia, quem se dis­ponha a fi­nan­ciar-nos. Como há muito di­zemos, o ob­jec­tivo de su­ces­sivas ad­mi­nis­tra­ções norte-ame­ri­canas, com o blo­queio, é as­fi­xiar a Re­vo­lução, cri­ando di­fi­cul­dades aos cu­banos em todos os as­pectos da sua vida. Tem uma vo­cação quase ge­no­cida...

Aliás, du­rante o pe­ríodo mais crí­tico da COVID-19, o blo­queio privou-nos de va­cinas e dos fi­nan­ci­a­mentos ne­ces­sá­rios para res­ponder à pan­demia. Não nos foi con­ce­dida ne­nhuma fa­ci­li­dade nesse pe­ríodo di­fícil, antes pelo con­trário.

Mas Cuba pro­duziu as suas pró­prias va­cinas...
Sim, graças à nossa ca­pa­ci­dade ci­en­tí­fica e de ino­vação e ao im­pulso e co­o­pe­ração do Go­verno con­se­guimos pro­duzir cinco va­cinas, duas das quais re­co­nhe­cidas pela Or­ga­ni­zação Mun­dial de Saúde. Es­tamos ao nível dos me­lhores do mundo. Ou­tros países com dez vezes mais re­cursos não con­se­guiram re­sul­tados tão re­le­vantes… E nós con­se­guimos, com muita cri­a­ti­vi­dade e com as ca­pa­ci­dades pró­prias cri­adas pela Re­vo­lução.

Como é isso pos­sível? Como pode um pe­queno país, ainda para mais blo­queado, fazer coisas tão in­crí­veis ao nível da Ci­ência, da Tec­no­logia e da Saúde?
Fidel afirmou em 1961 que o fu­turo de Cuba seria o da Ci­ência e do Pen­sa­mento e a Re­vo­lução apostou nisso. As ca­pa­ci­dades que per­mi­tiram a pro­dução de va­cinas pró­prias as­sen­taram no de­sig­nado Polo Ci­en­tí­fico do Oeste de Ha­vana, criado pre­ci­sa­mente por im­pulso de Fidel Castro e hoje in­te­grado no con­sórcio Cuba Pharma.

As va­cinas não foram cri­adas em seis meses. A sua cri­ação as­senta no co­nhe­ci­mento acu­mu­lado ao longo de anos em termos de pro­dução de va­cinas e de bi­o­logia ge­né­tica. Como afirmou o pre­si­dente Diaz-Canel, «a Ci­ência salvou Cuba da COVID-19», e é também graças a ela que hoje vi­vemos uma si­tu­ação de nor­ma­li­dade.

A ad­mi­nis­tração Trump agravou o blo­queio e a de Biden pro­meteu su­a­vizá-lo. Es­tamos pe­rante mu­danças reais ou apenas re­tó­rica?
Com Trump foram apli­cadas 242 me­didas su­ple­men­tares de agra­va­mento do blo­queio. Biden pro­meteu ate­nuar al­gumas delas, no­me­a­da­mente ao nível das re­messas dos emi­grantes, que vol­ta­riam a ser pos­sí­veis. É falso! Pura pro­pa­ganda! De que forma se pro­ces­sa­riam essas trans­fe­rên­cias? Com que me­ca­nismos? Nada disto foi re­gu­la­men­tado.


Re­sis­tência com cri­a­ti­vi­dade

Para lá das ques­tões am­bi­en­tais, ci­en­tí­ficas e tec­no­ló­gicas, de que já fa­lámos, que efeitos tem o blo­queio nas ou­tras áreas da vida de Cuba?
O blo­queio afecta gra­ve­mente a vida do país em todos os as­pectos.

Ao nível dos me­di­ca­mentos, não po­demos aceder aos que têm in­cor­po­ração norte-ame­ri­cana. Quanto aos ali­mentos, temos de os ir buscar a mer­cados muito mais dis­tantes, tantas vezes ao dobro e até ao triplo do preço.

Na energia so­fremos uma per­se­guição quase diária, sendo muito di­fícil o abas­te­ci­mento até em países amigos, como a Ve­ne­zuela, pois um navio que faça esse trans­porte fica im­pe­dido de aceder a águas ter­ri­to­riais norte-ame­ri­canas du­rante muito tempo… Em termos co­mer­ciais, al­guma em­presa ou banco que faça ne­gó­cios ou tran­sac­ções com Cuba sofre san­ções, pelo que ou esses ne­gó­cios ou tran­sac­ções não se pro­cessam ou pa­gamos a mais por eles. Por vezes nem se­quer au­to­rizam o pa­ga­mento das quotas a or­ga­nismos in­ter­na­ci­o­nais…

Mas nada disto é de hoje, tem mais de 60 anos. E nós re­sis­timos! É uma questão de so­be­rania, de dig­ni­dade, de não nos ren­dermos e de con­se­guirmos criar con­di­ções para o nosso de­sen­vol­vi­mento au­tó­nomo.

Que ca­minho está tra­çado para con­se­guir esse de­sen­vol­vi­mento au­tó­nomo?
Temos de­fi­nido um Plano de De­sen­vol­vi­mento Eco­nó­mico e So­cial até 2030, com eixos es­tra­té­gicos, ob­jec­tivos e me­didas con­cretas, apro­vado no VIII Con­gresso do Par­tido Co­mu­nista de Cuba, em 2021, a partir de ori­en­ta­ções que já vi­nham do V Con­gresso [de 1997].

Há um mo­vi­mento, que é trans­versal a todo o ter­ri­tório e a todos os sec­tores, para im­ple­mentar um sis­tema de go­verno ba­seado na Ci­ência e na Ino­vação, sob a pre­missa de que não há di­fi­cul­dade, por maior que seja, que não possa ser su­pe­rada com as nossas pró­prias forças e ca­pa­ci­dades. A COVID-19, aliás, mos­trou-nos isso.

O ob­jec­tivo, agora, é aplicar essa pre­missa à pro­dução de ali­mentos e de energia eléc­trica. Es­tamos em­pe­nhados neste ob­jec­tivo. É a re­sis­tência com cri­a­ti­vi­dade.

E de­pois há a so­li­da­ri­e­dade, claro, que de­sem­penha um im­por­tante papel: todos os anos, a quase to­ta­li­dade dos países do mundo con­denam o blo­queio norte-ame­ri­cano e re­clamam o seu fim, e isso é muito sig­ni­fi­ca­tivo.

Uma coisa é certa, por mai­ores que sejam as di­fi­cul­dades e os de­sa­fios, Cuba cá es­tará a de­mons­trar que é pos­sível uma al­ter­na­tiva ao ca­pi­ta­lismo, mais hu­mana e so­li­dária. Entre as pes­soas como entre os países.


Pela eli­mi­nação total das armas nu­cle­ares

Tra­ba­lhou du­rante anos na área do de­sar­ma­mento. Como ob­serva hoje as cres­centes ame­aças de guerra entre po­tên­cias nu­cle­ares?
Co­meço por re­meter para as re­fle­xões do Co­man­dante Fidel Castro sobre o in­verno nu­clear, nas quais con­si­dera que um dos mais graves pe­rigos para a Hu­ma­ni­dade é pre­ci­sa­mente o de uma con­fla­gração nu­clear. Um con­flito desta na­tu­reza pode ra­pi­da­mente pôr fim à vida no pla­neta e pode ocorrer em qual­quer pe­ríodo de tensão entre países de­ten­tores de armas nu­cle­ares. É um grave risco.

Cuba é um dos países, entre mais de meia cen­tena, que já aderiu ao Tra­tado de Proi­bição de Armas Nu­cle­ares. A que se deve esta po­sição?
O po­si­ci­o­na­mento de Cuba é claro, sempre foi. Somos pela paz e de­fen­demos a eli­mi­nação total das armas nu­cle­ares. Ora, esse tra­tado, que aponta pre­ci­sa­mente a esse ob­jec­tivo, as­sume uma po­sição co­e­rente, sendo que essas armas têm um pro­pó­sito pu­ra­mente ofen­sivo, servem para causar o má­ximo dano sobre po­pu­la­ções e ame­açam a vida na Terra. Poucos países têm este poder e isso não é justo nem é ra­ci­onal.

Cuba de­fende esta po­sição em todas as oca­siões e es­paços, tanto no país como a nível in­ter­na­ci­onal.